18 março 2011

O que quer uma mulher?

Foi esta a pergunta que Freud levou para a tumba.
Não qual a razão da existência humana, não qual o sentido da vida, mas o que quer uma mulher.

Não posso deixar de fazer referência ao facto de que entrei em 2011com funerais. Já lá vão três!
Um deles foi o de um aluno meu do ano passado. E como estas mortes antecipadas doem e desencadeiam em nós uma enorme incompreensão. Não podemos dizer: "Olha, já está no descanso, já não sofre mais, aquilo também não era viver."
Não nos podemos conformar em nenhum destes resguardos, que apenas querem mostrar como a morte deve normal e aceitável. Não é, nunca é. Tentamos de tudo, fingimos para nós e para os outros, mas é a memória que nos trai. Medo de esquecer, e lembrança de tudo o que aconteceu de bom. 

Como se pode ver, tenho andado num enorme vórtice de pensamento sobre o sentido da Vida, no geral, e da minha vida, em particular. Que sentido tem tudo isto?
Que sentido tem perdermos o nosso companheiro de equipa? Que sentido tem perdermos aquele com que partilhámos uma vida? Que somos nós afinal, senão uma equipa com um jogador a menos, que invariavelmente põe as culpas no Árbitro desta partida a que chamamos Vida. As minhas palavras são melosas, mas o seu conteúdo não.

Doeu-me, mais do que constatar ausências, os desfasamentos que a morte cria na vida dos outros. As redefinições de identidade que isso pode causar. E logo eu, sempre atenta, sempre precavida, penso: como seria se fosse comigo? Se fosse eu a perder o meu marido? Se fosse eu a perder o meu filho?

Estou a atravessar uma das mais difíceis fases da minha vida, daquelas que envolvem escolhas, opções por um lado e recusas ao outro. Significa ganhar, perdendo, abdicando.

Talvez eu tenha deixado estas escolhas para demasiado tarde e, talvez por isso, tenha sujeitado o meu corpo, e a minha saúde, ao esgotamento e à depressão. A luta é comigo, contra mim. Eu versus eu. O André ajuda, mas não pode percorrer este caminho por mim. Tenho de ser eu a fazê-lo. E questiono como seria, se não eu o tivesse ao meu lado... Sinto-me ainda tão pequenina, tão cheia de coisas para aprender (que no fundo é ser vazia), tão impotente perante os desafios que se me colocam, mas acima de tudo, aqueles que coloco a mim própria.

Horas, que já devem somar dias inteiros de conversas, sobre mim, as minhas reacções, o que eu faço e não faço, mas que não controlo. E nada.
Nada.

Nem quero mais explorar como me sinto, ou quais são os meus sintomas. Eu estou é profundamente frustrada por nunca mais dar com o diagnóstico. E sem ele, não há cura. 
Não sei a raiz do problema, não sei o que tenho de atacar. Os comprimidos são uma ajuda: é comprar tempo e alguma energia para atacar.

Sinto-me pequena, ínfima, perante aquilo que eu posso ser para mim própria: o meu maior e mais devastador inimigo, aquele que num golpe afiado e preciso, me deita por terra e me quebra as rótulas para não mais me levantar.

Posso pôr a culpa em alguma coisa? Claro que sim, em mim. 
Fui eu que criei todo este teatro, toda esta fartura de angústias para eu me rebolar.
Que foi que eu fiz?
Tentei fazer como Ícaro. Quis tocar o sol, quis tudo da vida, não suportei abdicar de nada. Queria mais e mais e tudo bem e perfeito.
O Ícaro espetou-se no chão. E eu também.

Há um ponto em que pagamos pela nossa parvoíce na vida. É quando o nosso corpo dá sinal. O meu tem dado sinais, mas age sem eu lhe mandar e sem o intentar. Experimento esta sensação de descontrole de mim, a começar pelas minhas reacções físicas, há já alguns anos. Primeiro, com os sintomas da ansiedade, mais recentemente com os sintomas da depressão, e pergunto-me: o que estás tu à espera, Ana Sofia, para tomar nas mãos as rédeas da tua própria vida?

Anima-me a pergunta, derrota-me a resposta: não sei.

A esta angústia de ser uma menina irreverente que não cumpre regras, uma indisciplinada na minha sala de aula, uma desatenta às minhas próprias ordens, sem ter nunca a possibilidade de pôr esta fedelha na rua, tenho a somar a vergonha.
Claro, a vergonha.
Eu sou a personificação de tudo o que desprezo, e sou-o, contudo.
Faço tudo mal, ao contrário de tudo o que me rege, mas faço-o, contudo.
E o que me sobra ao fim do dia? Lidar com tudo isto e com a perspectiva que os outros têm de mim, e que reconheço que seria a minha, não fosse esta a minha condição.

Como sempre, aplicando as leis cristãs e das fábulas: tudo acontece, por uma razão.
E aquilo que se assume como uma condição muito pessoal, que envolve o domínio físico e psicológico da minha pessoa, rapidamente extravasa para se constituir como uma metáfora do meu domínio profissional.

Hoje vejo os meus alunos com outros olhos e lamento ter-lhes exigido o cumprimento de tarefas e prazos, sem considerar que eles os falhassem por outra razão que não fosse a preguiça.
Se um aluno está distraído, distante, calado e sem motivação, eu já não venho com aquela lenga-lenga do "isto no meu tempo não era assim, nós cumpríamos o que era pedido, esta geração vai por um caminho que não sei onde vai dar!"

Hoje sei que nem tudo o que fazemos depende de o querermos, ou não, fazer.  Há coisas que não queremos fazer e fazemos, e outras que queremos fazer e não ficam feitas.
Olho para esses meus alunos, sem me preocupar em ser branda nem em desculpabilizá-los pela sua preguiça. Olho-os e vejo iguais, a mim. Pobres desgraçados encerrados num mundo que não controlam, como drogados. Remetidos a um vício do qual já não conseguem sair sozinhos.
Eu sei qual foi o meu vício: foi acumular coisas para fazer, que foi só tudo o que me apareceu pela frente.
Mas sei, que a juntar ao vício, e é por isso que, de resto, caímos nele, houve ali uma falta, uma ausência. A morte da minha auto-estima.
Eu tinha de ser mais, fazer mais, obter mais, porque eu, tal como era e sou, não era suficiente.
Eu não era suficiente... Que afirmação dolorosa, tanto mais quando a imagino proferida na boca de qualquer dos meus alunos.
"Tu não és suficiente? Isso é que era bom! Tu és um ser excepcional e único!" 
Esta seria a minha abordagem que, embora sempre inflamada é sempre sentida. Para os outros.
Acho que todos são seres especiais e fabulosos, mas eu não. Eu podia ser sempre um bocadinho melhor.

Esta falha, no meu amor próprio, em muito tem a ver com o que eu descobri, esta semana, ser o nosso "clube de fãs".
O meu clube de fãs, durante a minha infância resumiu-se à minha família. E, porque eu sempre fui uma rapariguinha determinada, eles nunca pensaram ser necessário alimentar-me o ego. Nunca vi ninguém com pompons a saltar e a gritar o meu nome. Quase que era esperado que eu fosse assim. "Assim," não era ser o melhor possível, mas ser a melhor.

Quando disse ao meu pai que tinha tido um 20 a História de Arte na nota de final de ano, ele não me deu os parabéns. Na altura, encarei como se ainda me tivesse faltado qualquer coisa. Devo ter achado que tinha mesmo era de ter arrancado um 21 ao professor...

Hoje sei, com muito custo, porque não foi esta a minha leitura durante as últimas décadas, que ninguém comentou ou valorizou os meus sucessos, porque todo o meu clube de fãs, não esperava de mim outra coisa.

Quer dizer, quando o Sporting ganha, faz-se uma festa. 
Quando o Porto perde é que a malta se chateia.

O meu pai redimiu-se na minha fita de fim de curso, com palavras que me fizeram chorar compulsivamente, e que traduzem a melhor manifestação que se pode ter de um fã . Ainda assim, nunca me as repetiu em voz, e nunca se falou sobre isso. Li-as em deferido e guardei-as no meu íntimo.

Relembro-me delas, sempre que não acredito no meu poder, e que é quase sempre. Aliás, o efeito que elas têm nem é nenhum. Acho sempre que a pessoa estava só a ser simpática, porque eu sou do mais cruel comigo própria e faço-me acreditar que eu tenho de arrancar 21's à vida, coisa que muito dificilmente vou conseguir.

A propósito de sentir falta deste elogio, deste miminho minúsculo que se pode fazer, falei com o André sobre sentir que ele não me presenteava com nenhum destes bombons para o ego.
A cara de indiferença do André é a mesma de quando o Porto ganha. Mas triste é eu pensar que sou um Sporting muito falhado e que em todas as minhas vitórias vejo derrotas.
É como se eu não visse o mundo, ou estivesse desfasada dele. Por um lado, oiço as pessoas a dizerem-me que é estúpido (quase pecado) eu sentir-me assim, dadas as minhas boas qualidades. Por outro lado, estou eu com uns enormes óculos fundo de garrafa a dizer: "Não estou a ver nada!"

Quando nos falta auto-estima, não são os outros que no-la dão. Mas podem alimentá-la, regá-la, cultivá-la em nós. É por essa razão que assim que vejo um aluno meu com um casaco giro ou um penteado novo, faço questão de lho dizer logo. No que a mim me diz respeito, só estou a ser sincera e esse gesto pode fazer a diferença no dia dele. Pode ser a luz na escuridão, pode ser motivo de um sorriso ou de um pensamento: "Eu sou mais do que suficiente!"

Decidi, por isso, numa das minhas muitas decisões que me têm assolado esta semana, a aumentar o meu clube de fãs, dado que ele tem vindo a sofrer baixas, e por essa razão vou trazer os meus cães para a casa nova. 
...

Das minhas divagações todas, é esta a conclusão que chego?
É.
É que nem eu sei o que quer uma mulher, mas sei quer sempre coisas diferentes, em diferentes momentos, e depois já não sabe se as quer, ou se alguma vez as quis.
Por essa razão, é que precisamos do nosso clube de fãs: para nos centrarmos, para sabermos quem somos e o que real e efectivamente precisamos mais de ser. Para nos contentarmos connosco, porque isso já é um enorme privilégio. 
Pena é que cada um de nós não tenha essa certeza e precise da certeza do outro, para reafirmar a sua. 
Eu, infelizmente, ainda sou assim.
E ando a convencer-me de que isso, apesar de tudo, é suficiente.