Vou a caminho do trabalho a pensar que ser professora é tão complicado como trabalhar na máfia. Há uma organização estabelecida e é difícil ir contra ela. Os miúdos querem os testes dados (literalmente), querem saber de antemão as perguntas que vão sair e ameaçam desistir da escola porque eu lhes complico a vida nesse sentido. Claro que a única coisa que obtenho é exactamente aquilo que o ministério e o órgão de gestão da escola não querem: um insucesso declarado nos testes, e abandono escolar.
Mas então, penso eu, enquanto conduzo o carro em stand by, deverei eu ceder? Ser menos instransigente na divulgação do teste? Deixar cair umas dicas demasiado explícitas? Tudo a bem do sucesso escolar, e da prevenção do abandono? A solução é tentadora quando, para mais, vou ser avaliada pelos resultados dos meus alunos, que eu própria terei de justificar. Todos ficavam felizes: os alunos, que passam; a escola, que os mantém lá; e eu, que sou positivamente avaliada por obter bons resultados. A isto chama-se corresponder às expectativas, porque em Portugal cumprir as regras não é questão, chegar aos objectivos é que é. Quanto aos meios utilizados... isso já é outra conversa.
E a honestidade? - pergunta-me a consciência aflita.
Sim, e a honestidade?
Caramba, uma pessoa que queira viver em paz com a sua consciência, tem de se confrontar com os alunos que querem abandonar a escola, em jeito de chantagem psicológica, o que revela não me conhecerem nem um pouquinho, porque a minha resposta nunca é de compactuar com situações menos claras.
E pior, tenho de ver uma avaliação minha prejudicada pelas classificações de alunos que não querem estudar, e mais ridículo ainda, sendo esta a opção deles, sou eu que a devo justificar.
Quando a ministra diz que quer melhorar os resultados dos alunos, e diminuir o abandono, não especifica se quer manter (ou diria antes introduzir) uma cultura de rigor e exigência. É do estilo: façam-no seja de que maneira for. Tipo máfia.
Vivo trabalhando contra o sistema. Faço aquilo que para mim está certo o que já é em si uma grave demonstração de desobediência. Mas um dia, quando me questionarem, posso dizer que foi por eu achar que estava certo. Prefiro ser penalizada por pensar pela minha cabeça, do que pela dos outros.
Chateia-me solenemente que estas coisas continuem a acontecer e toda a gente esteja mais preocupada com rankings e estatísticas do que com a real desgraça que vai pelas nossas escolas. A cultura do paracer instalou-se e é para ficar.
A atitude dos alunos é sintomática disso. Eles sabem e jogam com a fragilidade da posição dos professores, meros palhaços atribuidores de classificações pré-definidas (mais de 50% de negativas é que não... lá temos nós de fazer o relatório!).
A estatísca em Portugal é uma farsa. Deveria ser um instrumento de diagnóstico, mas ao manipular os resultados que objectivo poderá ter? O da legitimação das políticas, claro.
Nas estatísticas, tudo corre bem, todos os alunos passam, mesmo aqueles que mereciam reprovar. E nós perpetuamos isto, dando razão à "Madrinha", só porque temos muito a perder se decidirmos pensar por nós e agir em conformidade.
Ainda ontem ouvi uma comparação excelente no rádio sobre o rumo que leva o ensino. O poder político, ao longo destes anos tem negligenciado a qualidade do ensino em favor da quantidade, dos números e das estatísticas. Fá-lo porque não se apercebe da gravidade das consequências, porque pensa no ensino com uma ligeireza que faz da Escola uma enorme cadeia de serviços de babysitting.
Imaginemos que estes políticos começavam a legislar sobre as escolas de condução: "queremos é sucesso, queremos que não desistam!"
Inventa-se o programa Novas Oportunidades para todos aquelas a quem a carta já foi apreendida, que têm a oportunidade de voltar à escola de condução para ter outra de novo. Lembram-se do programa Mais de 23, para quem já reprovou mais de 23 vezes no exame de código, e que pode finalmente aceder ao exame de condução.
E toda a gente tinha carta, e toda a gente andava por aí a conduzir.
A comparação parece-me óbvia demais para a Ministra, e todos os outros que antes dela se sentaram nessa cadeira, não verem que os acidentes no Saber não provocam menos danos do que os acidentes na estrada.
Daqui a uns veremos inseridos no mundo profissional uma série de "alunos de domingo", "Alunos do cabulling" qua artilhavam as canetas e estojos com artifícios só para passar à frente dos outros, e uma gigantesca cambada de "aceleras", que em vez de terem parado nos vermelhos do final do ano pisaram sempre a fundo, com o consentimento das autoridades.
30 outubro 2007
16 outubro 2007
O Monstro da Caixa das Bolachas
Gostava de entrar num barquinho e navegar.
Como se não houvesse amanhã.
Afundar-me numa onda e vir à tona como um golfinho.
Sou uma menina mimosa, medricas e melindrada. Assusto-me com facilidade e só nos sonhos enfrento os inimigos e as tempestades. Na vida real sou a primeira a esconder-me do perigo.
Ser responsável é saber responder pelos seus actos. E eu nem sempre quero responder pelos meus. Falta-me a cara de pau, onde me sobra a vergonha e o orgulho.
Se eu não fosse tão estupidamente orgulhosa, a vergonha nem fazia comichão, mas a mim dá-me uma coceira...
Tento fechar o meu orgulho com uma tampinha. Imagino-o na caixa das bolachas, porque nunca vi nenhuma querer galgar cá para fora.
O orgulho ali fechado, arrumadinho, e eu cá fora, sem bolachas para comer.
...
Passar vergonha é difícil de engolir.
Vai uma bolacha?
Como se não houvesse amanhã.
Afundar-me numa onda e vir à tona como um golfinho.
Sou uma menina mimosa, medricas e melindrada. Assusto-me com facilidade e só nos sonhos enfrento os inimigos e as tempestades. Na vida real sou a primeira a esconder-me do perigo.
Ser responsável é saber responder pelos seus actos. E eu nem sempre quero responder pelos meus. Falta-me a cara de pau, onde me sobra a vergonha e o orgulho.
Se eu não fosse tão estupidamente orgulhosa, a vergonha nem fazia comichão, mas a mim dá-me uma coceira...
Tento fechar o meu orgulho com uma tampinha. Imagino-o na caixa das bolachas, porque nunca vi nenhuma querer galgar cá para fora.
O orgulho ali fechado, arrumadinho, e eu cá fora, sem bolachas para comer.
...
Passar vergonha é difícil de engolir.
Vai uma bolacha?
02 outubro 2007
A papinha toda feita!
Os miúdos, se é que se pode chamar miúdos a todos os que diferem menos de uma década de mim, seja para baixo ou para cima, querem a papinha toda feita.
-"A stora não vai dar um papel com estas regras?"
A "stora" sou eu, a catraia.
"Estas regras" são aquelas frases chave que tenho estado a badalar durante todas as aulas, sempre a relembrar o que já aprenderam. Caramba, até eu já me farto de me ouvir a dizer sempre a mesma coisa.
À pergunta estúpida / ingénua do aluno comecei por responder com um sorriso benevolente, ao que parece que o rapaz até levou a mal. Quer-se dizer: venho eu para ali dar aulas e nem dou apontamentos? Nem resumos? Nem quadros explicativos?
A razão do meu sorriso está numa só: aquela pergunta só faz sentido nos dias de hoje. Ou, vá lá, nos primeiros dias do secundário, porque depressa percebemos que as coisas são para sermos nós a fazê-las, seja tirar apontamentos, seja tomar atenção nas aulas para o efeito, seja fazer as nossas próprias cábulas e mnemónicas.
Foi assim que eu aprendi.
Foi assim que eu fui aluna.
E é por isto que hoje, ter sido boa aluna, é um grande handicap para mim como professora.
Há perguntas que os alunos me fazem em que eu me preocupo mais com a validade da pergunta do que com a urgência na resposta.
Hoje tudo isto faz sentido. Meninos respondões, malcriados, sejam miúdos, ou graúdos de já terem filhos deles.
Hoje, se eu repetir numa aula 20 vezes que o "céu é azul" perante uma turma de 20 alunos, constato que, no mínimo:
- dez alunos pedem: "Stora, podia explicar outra vez que eu não ouvi?"
- quatro alunos perguntam: "Mas a stora está a falar do céu ou do sol?
- seis alunos não se pronunciam: ou estão a tomar atenção ou estão, de facto, na lua.
Se pergunto: "Já todos sabem que o céu é azul? Mesmo, mesmo, mesmo? Como se a vossa vida dependesse disso??", obtemos o famoso assentimento à circo:
"- Siiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmm!!!!!!!"
E pergunto eu:
"- Então, de que cor é o céu?"
Para mal dos meus pecados:
- 7 dizem azul
- 8 dizem outra cor
- 3 pedem para explicar de novo
- 2 dizem que pensavam que eu estava a perguntar sobre a lua.
E ainda querem apontamentos...
Deve ser por estarem demasiado esgotados para prestar atenção nas aulas!
Geometria Descritiva é uma disciplina que envolve raciocício, vizualização, abstracção. Puxa pelo calcalhar de Aquiles dos meninos. E em vez de fazerem como a minha outra turma, que encara as dificuldades como desafios a superar, não: preferem contornar os obstáculos da maneira mais fácil que é não os ultrapassar de todo.
Não se perde em conhecimentos da disciplina (que é o menos relevante nisto tudo), mas sim na disciplina de si.
Por isso expresso aqui o meu agradecimento a todos os meus professores que me obrigaram a ficar com calo de escrever, que se recusaram a ditar definições, que me fizeram concentrar-me nas aulas e gerir a memória de forma a reter tudo o que ouvia, e a escrevê-lo de forma organizada, coerente e esteticamente aprazível (sim, com cores), e na hora.
Há um filme (péssimo!), "Evan Almighty", em que a personagem de Deus (cuja genialidade está em ser negro, mas que eu ainda transformava em mulher) explica o que faz para dar às pessoas o que elas querem:
Se pedirmos paciência a Deus, Ele vai-nos dar oportunidades de sermos pacientes.
É dar a rede, e não o peixe.
Eu, que já sou graúda, também gosto da papinha feita: Nestum todo lambusado de mel e propólis. Fora isso, dedico-me à pesca.
-"A stora não vai dar um papel com estas regras?"
A "stora" sou eu, a catraia.
"Estas regras" são aquelas frases chave que tenho estado a badalar durante todas as aulas, sempre a relembrar o que já aprenderam. Caramba, até eu já me farto de me ouvir a dizer sempre a mesma coisa.
À pergunta estúpida / ingénua do aluno comecei por responder com um sorriso benevolente, ao que parece que o rapaz até levou a mal. Quer-se dizer: venho eu para ali dar aulas e nem dou apontamentos? Nem resumos? Nem quadros explicativos?
A razão do meu sorriso está numa só: aquela pergunta só faz sentido nos dias de hoje. Ou, vá lá, nos primeiros dias do secundário, porque depressa percebemos que as coisas são para sermos nós a fazê-las, seja tirar apontamentos, seja tomar atenção nas aulas para o efeito, seja fazer as nossas próprias cábulas e mnemónicas.
Foi assim que eu aprendi.
Foi assim que eu fui aluna.
E é por isto que hoje, ter sido boa aluna, é um grande handicap para mim como professora.
Há perguntas que os alunos me fazem em que eu me preocupo mais com a validade da pergunta do que com a urgência na resposta.
Hoje tudo isto faz sentido. Meninos respondões, malcriados, sejam miúdos, ou graúdos de já terem filhos deles.
Hoje, se eu repetir numa aula 20 vezes que o "céu é azul" perante uma turma de 20 alunos, constato que, no mínimo:
- dez alunos pedem: "Stora, podia explicar outra vez que eu não ouvi?"
- quatro alunos perguntam: "Mas a stora está a falar do céu ou do sol?
- seis alunos não se pronunciam: ou estão a tomar atenção ou estão, de facto, na lua.
Se pergunto: "Já todos sabem que o céu é azul? Mesmo, mesmo, mesmo? Como se a vossa vida dependesse disso??", obtemos o famoso assentimento à circo:
"- Siiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmm!!!!!!!"
E pergunto eu:
"- Então, de que cor é o céu?"
Para mal dos meus pecados:
- 7 dizem azul
- 8 dizem outra cor
- 3 pedem para explicar de novo
- 2 dizem que pensavam que eu estava a perguntar sobre a lua.
E ainda querem apontamentos...
Deve ser por estarem demasiado esgotados para prestar atenção nas aulas!
Geometria Descritiva é uma disciplina que envolve raciocício, vizualização, abstracção. Puxa pelo calcalhar de Aquiles dos meninos. E em vez de fazerem como a minha outra turma, que encara as dificuldades como desafios a superar, não: preferem contornar os obstáculos da maneira mais fácil que é não os ultrapassar de todo.
Não se perde em conhecimentos da disciplina (que é o menos relevante nisto tudo), mas sim na disciplina de si.
Por isso expresso aqui o meu agradecimento a todos os meus professores que me obrigaram a ficar com calo de escrever, que se recusaram a ditar definições, que me fizeram concentrar-me nas aulas e gerir a memória de forma a reter tudo o que ouvia, e a escrevê-lo de forma organizada, coerente e esteticamente aprazível (sim, com cores), e na hora.
Há um filme (péssimo!), "Evan Almighty", em que a personagem de Deus (cuja genialidade está em ser negro, mas que eu ainda transformava em mulher) explica o que faz para dar às pessoas o que elas querem:
Se pedirmos paciência a Deus, Ele vai-nos dar oportunidades de sermos pacientes.
É dar a rede, e não o peixe.
Eu, que já sou graúda, também gosto da papinha feita: Nestum todo lambusado de mel e propólis. Fora isso, dedico-me à pesca.