Já referi os benefícios de crescer no campo, nem que seja para ter a experiência de brincar com os bichos de conta, achados debaixo dos vasos, ou de fazer batidos de "limão" com sonasol e pó amarelo dos pinheiros!
O viver no campo, com toda aquela terra, ali só para nós, pressupõe um instrumento.
A flauta ondulante de um esvoaçar?
O piano gotejante dos pingos da chuva?
Não.
Obviamente, que não!
A enxada, pois claro.
Quando se é criança e se tem uma porrada de tempo livre para fazer tudo, e ainda ficar a pastar, porque já não se tem imaginação para fazer mais nada, temos de nos ocupar.
Sabe-se lá porquê, a enxada, pode ser considerado um dos meus brinquedos de infância.
Eu e o meu irmão (o complot é fundamental!) tínhamos por hábito estar a cavar buracos no quintal. Ao ver as nossas potencialidades, o meu pai aproveitou logo e transferiu-nos para o jardim, onde pudemos cavar a terra para preparar a chegada da relva. Aquilo foi o sonho de qualquer criança: soltar a terra, e retirar as pedras e as ervas daninhas com o ancinho. Mas.... atenção!... com 0% de salário e 100% de prazer. Eu diria até orgulho!!
Ena pá! Ricos tempos!
E da vez em que eu e o meu irmão (lá está, o primitivo duo dinâmico!) ouvimos a nossa avó a queixar-se que estava a sentir-se muito mal, do estilo:
"Ai meninos, hoje não estou bem! Nem sei o que tenho e eu nem sou pessoa de me queixar".
Devemos ter ouvido a avó a cantar, que era sempre sinónimo de que estava triste.
(Isto só por si já dava para escrever um livro. Canta-se porque se está triste??? Pois é. A minha avó Maria só lhe dava para cantar quando estava triste. "Quem canta, seus males espanta", dizia ela, mas nós nunca percebemos como é que aqueles fados de fazer chorar as pedras da calçada iam a ajudá-la a sentir-se melhor.)
Vai daí, vendo a avó naquele estado, eu com oito anos e o meu irmão com seis (à volta disso) partimos em busca da solução.
Com o quê?
Com a enxada na mão.
Cavámos, cavámos, cavámos até já fazer bolhas nas mãos com o cabo de madeira. O buraco começava a ganhar forma e profundidade, quando a minha avó surge à soleira da porta da cozinha e começa a gritar:
"Ah, malvados de um raio! Tirai-vos daí! Ai credo, o que vai aqui não vai em Roma! (e esta expressão é sempre sinónimo de que fizemos asneira da grossa!)"
Sai o primitivo duo dinâmico da escavação, com terra até aos ouvidos, e a justificação surge das nossas boquinhas inocentes:
"Oh vó, como disseste que te estavas a sentir mal nós viemos aqui fazer uma campa. Assim se morreres ficas ao pé de nós!"
Esta é a verdadeira razão pela qual a minha avó resistiu a dois AVC'S e outros ataques cardíacos. Senão morreu com esta frase, há uns valentes vinte anos atrás, é porque era rija!
As crianças são mesmo o melhor do mundo, não são? :)
2 comentários:
A tua avó teve uma boa oportunidade para dar uma gargalhada...seria o tratamento de choque para qualquer ataque ao coração que aqueles estragos lhe tivesse provocado.
Luís
Pois, ela não ficou propriamente contente com isto. Até telefonou para a minha mãe:
"Tu já viste isto? Os teus filhos querem-me enterrar no quintal!!!"
Ainda foi a minha mãe que lhe explicou que a nossa atitude era um acto de amor.
Só mais tarde é que este episódio a fez rir!
Acho que as crianças têm um nível de sinceridade para o qual nunca estamos preparados!
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