Acabei de receber o convite para a apresentação de uma tese de uma colega de mestrado: "Prótese - Ouvinte". Surdez, portanto, é o tema.
Os cegos no metro de Lisboa pedem dinheiro a troco de uma sentença.
Há o senhor baixinho e gordinho, há uma menina de olhos cirurgicamente fechados, há uma senhora de voz doce, mas o mais exuberante de todos é o jovem (ainda lhe posso chamar jovem, porque deve ter pouco mais que a minha idade) de olhos azulados pela cegueira, com o seu batuque.
A arte é uma evolução, porque a pessoa não se contenta. Não se trata de querer fazer melhor ou mais perfeito. É apenas uma questão de satisfação. Não dizemos: "ainda não está bem" mas sim, "ainda não está como eu quero".
Ora este jovem cego, cujo nome desconheço, mas que desde já baptizo de Baltazar (não é rei mago, mas tem cara disso - de Baltazar, claro!) tem vindo a evoluir nas arte de cativar o público.
A sociedade de hoje não se comove com facilidade. Há, por isso, que pôr em prática estratégias sempre inovadoras para responder aos desafios do público.
Sempre na alternância de sons graves e agudos, tudo começou com o:
"Tenha a bondaaaaade de me auxiliaaaa-re"
Depois evoluiu para:
"Agradeço a alguéeeem, que tenha a bondaaaaade de me auxiliaaaa-re"
Veio a crise e o artista, sempre atento, reformulou:
"Agradeço a alguéeeem, que tenha a bondaaaaade, ou a possibilidaaaade, de me auxiliaaaa-re"
Mas o artista tem de seguir as tendências. Vai daí pega-se num pau e numa lata e vá de batuque. Soa menos melodioso, mas parece-me que o objectivo é esse. A todos os nobres motivos para lhe darmos uma moeda, junta-se o do secreto desejo de o fazer parar.
Ecoava desde o fundo da carruagem e nem o barulho da hora de ponta o impede de perceber que estamos a remexer na carteira para lhe dar uma moeda. Cegos? Vêem tudo, mas com outros olhos. Senão vejamos:
Tlint!
A moeda está entregue. Duvido que sozinha vá fazer milagres.
Oiço o famoso "Saúde e sorte" (ao qual a senhora de voz doce até costuma acrescentar "para si e para todos os seus") e fico cheia.
Saúde e sorte...
Eles sabem mais do que eu o que é passar pelas provações da vida e quando me agradecem não me desejam dinheiro. Apenas tudo, e somente, o que o dinheiro não pode comprar.
Além da sapiência, toca-me também o poder do desejo de um desconhecido. Os desejos ou, se quiserem, as orações, das pessoas que nos são estranhas e, por isso, isentas de benefícios colaterais, são os mais puros e poderosos. Sinto-me tocada por todos os que me desejam bem, sem sequer me conhecerem. Até a senhora do parque de campismo em Idanha que me agradeceu por eu telefonar a dizer que já ia entrar depois das 19h, com um desarmante "Bem haja!".
Bem haja??? Eu? Mas ela nem me conhece!!!
Bem sei que estas expressões se dizem da boca para fora, mas eu gosto de as levar a sério, aliás, como gosto de fazer com tudo na vida.
Isto para dizer que na carruagem do metro há muito mais cegos do que aqueles que pedem bondade dos outros; e que a riqueza, na sua maior acepção, brinda os mais sábios e não os que se são ao luxo de ter dinheiro na carteira.
Para quê a lamechice e o moralismo? -perguntam vocês.
Para explicar que a ignorância, por vezes, não tem ouvidos nem para o batuque do Baltazar.
E porque as moedas sozinhas não fazem milagres, vejam 10 minutos do Telejornal e façam um desejo comigo para um desconhecido.
De certeza que vos vai ocorrer qualquer coisa.
1 comentário:
De cegueira todos nós temos um pouco. Nunca vemos tudo, nem o veremos jamais, se não procurarmos os olhos dos outros. Esta tua reflexão (e outras) são um pouco de visão acrescida.Partilhar é agradecer sem pedir nada em troca. Bem hajam os que o fazem. Não é preciso muito para que isso aconteça, às vezes basta o gesto de ouvir -também nesta situação abrimos os olhos, quando antes nos pareciam fechados.
Luís
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