20 outubro 2008

"Tu não eras assim..."

A propósito de um dia em que tive de estar em jejum para a colheita de sangue e não pude tomar o bendito comprimido da manhã.
Aparece uma fila de trânsito que faz demorar um percurso de 15 minutos numa hora; um condutor raivoso por lhe passarem à frente na fila, enquanto ele pára descaradamente no eixo da via para falar com os trabalhadores; e pronto!
Solta-se a adrenalina que é o meu equivalent
e interior para o Diabo da Tasmânia.

Mudei de rádio vezes sem conta, mas sintonizar seja o que for, ali para a Serra de S. Luís, é um desgaste ainda maior.
"Olha para o sol, para os passarinhos, para o alcatrão acabado de assentar, e esquece esse atrasado mental que vai no carro à tua frente, a quem só te apetece mandar umas duas ou três lambadas, por se armar num condutor muito ético e afinal está descontraidamente ao telemóvel. Vá à merda!"
Perdoem os sensíveis, mas de vez em quando também é preciso!

Fazem-se uns telefonemas, conversa-se um pouquinho para amansar o génio, e a lâmpada apaga-se, depois de me ter electrificado durante umas duas horas e meia. É certo que a esta hora já tinha o comprimidinho no bucho e já começava a fazer efeito, mas não há nada como virar a cabeça para outro lado e falar sobre tudo aquilo que não é o que nos está a chatear no momento.

Entretanto, espiolha-se a net em busca de um psicólogo, na esperança de que houvesse um site do estilo: "psicólogo altamente credenciado, pessoa séria, com um currículo vastíssimo, membro de não sei quantas mil associações ligadas à coisa, marque já a sua consulta, acordo com a ADSE". Acordo!
Eu acordo é para a vida, e faço a pesquisa como quem anda à caça ao gambuzino, à meia-noite e numa mata escura!! Lá se encontram uns nomes, umas moradas e pronto, vamos começar a tentar.

Refaz-se mentalmente o historial clínico: "por onde é que eu vou começar?" e lembro-me do que a Ana me disse ao telefone: "tu não eras assim".
Pois não.


Talvez eu sempre tenha sido ansiosopositiva, mas o vírus só activou quando entrei no mestrado. Porque "lembrar" é sempre um verbo que me é particularmente caro (pago em angústia normalmente) aqui reproduzo o que escrevi há cerca de 4 anos, para tentar compreender (ou direi antes, lamentar) esta condição em que tenho vivido submersa.

Uma altura da minha vida em que voltei à escola, em que viajava de comboio de Portimão para Lisboa todas as semanas, uma altura em que a minha vida foi, precisamente, um furacão, hoje transformado em tempestade tropical e só nalguns dias do ano.

19 NOV. 04 (Este foi o primeiro dia de aulas do mestrado)
Estou tão feliz! Tão realizada! Sinto-me tão bem sucedida!!! Alegre como quem como um doce sem culpa de engordar. Cheia, satisfeita, preenchida.

25 NOV. 04
Finalmente!! Estou no comboio, a caminho de Lisboa! Santa paciência, Deus diverte-se mesmo a ver-me sofrer! Depois do táxi que não chegava, depois de todos os vermelhos que apanhámos, lá arrastei a minha malinha (entenda-se que isto é um eufemismo - !!) pelas tabuinhas da linha de comboio e esperei. Pensava eu que ia chegar atrasada. Bom, este comboio regional é um caos! Mal consigo ver o q escrevo. NEm vou conseguir ler assim!
Enfim, agora está a ser giro, e tem estado a ser giro. Não tomei ainda café. Não me faz falta, mas queria um miminho, uma coisa pequenina e quentinha.
Já vamos em Alcantarilha. Depois é Algoz e depois Tunes.

26 NOV.04
Bom... sabem aquela sensação... aquela sensação de não ser su
ficientemente boa. (inspirar) ...
Aquela dramática e tortuosa sensação, que me perseguiu pela vida vida fora e ainda me atormenta, como um fantasma numa casa assombrada. Senti-a, sinto-a hoje. Que dor.
À semelhança com a casa assombrada, eu também tenho os estores corridos, os móveis tapados, o pó aculumado nos beirais das janelas e as teias de aranha a ligar todos os pontos da minha casa. Eu sou uma casa assombrada. Se não fosse, não era atormentada.
Esta sensação corroi-me como um ácido. Não posso fazer nada.
Talvez esta atitude de conformismo, "não posso fazer nada", seja mais uma teia de aranha que eu alimento. Mas corroi-me saber que ... até me envergonho de o dizer, mas por ser verdade aqui vai: que não sou a melhor.
Pronto.
Não sou.

E de repente, os meus sonhos, passam a ser eles próprios teias de aranha. Depois de saber que eu não vou à frente na corrida, de repente a meta parece-me demasiado longe. Como se fosse uma subida e não uma corrida. Ou como se fosse um comboio. Acredito na maior parte das vezes que sou um bom comboio, com qualidade, que viaja depressa e que tenta servir cada vez melhor os seus clientes. Sou um alfa pendular, ou pelo menos acredito que sim. Um dia passa por mim um TGV e todo o meu pequeno orgulho nas minhas viagens cai, como um semáforo vira verde. Ao ver a velocidade do TGV, penso que não passo de um comboiozinho, metido a besta, com a pretensão de ser rápido. E com isto deixo muitas vezes de ser comboio a sério para ser de brincar.
Para quê sonhar afinal? Mas alguma vez poderei chegar lá? Para quê sonhar com grandes viagens se eu afinal não estou destinada a ser de longo curso? Viagens dessas são para os TGV's. E todas as minhas viagens, as mais morosas e complicadas, nas piores condições atmosféricas, com todos os problemas técnicos que eu possa ter tido, ficam reduzidas a uma insignificância perante um T
GV.
Todos os destinos deixam agora de estar disponíveis para mim, mesmo que eu tenha locomotiva para isso. Simplesmente acho que o TGV chega lá mais depressa e eu nem fui feita para viagens internacionais. O que é nacional é bom e eu cá fico-me por isso. Alegremente continuo a fazer os percursos Porto-Lisboa e Lisboa-Faro, mas a vontade de ir a Barcelona não me larga. É aqui que sinto a sensação de não ser suficientemente boa, que agora vejo não ser mais do que não ser tão boa como um TGV, mas ser suficientemente boa para lá chegar. Será que a estação tem plataformas para receber mais do que um comboio? Posso até chegar tarde, mas tenho de tentar.
É sempre a curiosidade que ....


11 DEZ. 04
Sinto uma ansiedade a trepar por mim acima como um uivo cresce na noite. Intenso, a cada segundo que passa, cada vez mais insuportável.
Repito a mim própria aquelas frases para nos porem bem, que não são mais do que angustiantes. Não melhoram e fazem-nos perceber que não há nada a fazer: est
amos doentes e não há cura para nós.
Fracassar é um tremendo sucesso. Lindo. É uma boa frase feita, que pelos vistos as minhas entranhas não acreditam.
Fracassar deve ser encarado como um sucesso por ser exactamente uma etapa. Eu vejo-o como um fim, como se a partir daí me colassem na testa uma etiqueta, jamais descartável, de "loser". É um medo tão grande... Já tenho 26 anos, e rugas que não desaparecem quando páro de sorrir, e ainda tenho medos, destes grandes, paralisantes e angustiantes como os das crianças.
Enchi-me hoje de coragem e participei. Participei na aula, falei. Condenada ao silêncio pelo meu próprio medo: que grande ironia para uma pessoa que considera vital o acto de falar.
Mas hoje falei. Correndo riscos. O risco de ser ignorante, de me considerarem ignorante (não sei qual deles o pior) e o maior risco de todos: o de ser óbvia. O risco que me acompanhou no curso. O risco que tem o dom de me bloquear. Correndo o risco, caí nele. Pelos vistos, fui óbvia. Estas duas palavras intensificam incomensuravelmente o meu uivo. Auuuuuuuuuuuuuuu!

A perspectiva terapêutica apodera-se, toma conta do assunto. Ora bem, o que temos aqui é um caso de ansiedade, motivada por um medo e que se traduz num bloqueio da acção. Como resolver? Relativizando a situação para lhe retirar a importância desproporcionada. Alguma coisa destas está a fazer efeito?
Auuuuuuuuuuuuuuuuuú!!!!
Não.
Ok. Vamos tentar outra coisa. Minimizar o sucedido. Afinal foi só uma aula, foi só uma intervenção e eu não posso esperar lançar assim ideias fascinantes como os outros.
Pensava eu que estava na "mouche" da questão. O homem respondeu e eu nem sequer percebi a resposta dele. Se calhar o que percebi nem era nada do que ele queria dizer, se é que percebi alguma coisa.
Está a resultar?
Aúuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!!
Ok, não vamos piorar as coisas!
"Ana Sofia: (gosto de me dirigir a mim própria desta maneira directa tal qual fosse outra pessoa) CALMA".
Não vou enumerar razões para não ter realmente fracassado. Eu sinto que fracassei, e não há comprimido que prove o contrário. Vou antes tomar o fracasso como ponto de partida e lidar com ele. Aceitá-lo em vez de o negar e evitar.

(O lobo calou-se e olha para mim atentamente, expectante)

Se fracassei, se disse uma barbaridade óbvia, significa que arrisquei. Que enfrentei o medo e que isso já é um bom passo a dar.
Se fracassei, e tudo indica que sim, já sei que aquela observação é óbvia e aprendi com isso.
Se fracassei, e creio não haver dúvidas quanto a isso, cresci e mais vou crescer se não me impedir de correr o risco de fracassar. Correr riscos e atirar-me de cabeça num precipício são coisas diferentes.

"Ana Sofia, de uma vez por todas, aprende.
Aprende de uma vez.
Para que não tenhas de passar a tua vida na escola."


Adoro o termo "desempoeirada". Gostava eu de ser uma rapariga mais desempoeirada: menos teias e mais sonhos, menos pó e mais vontade.
Desempoeirada soa-me a alguém que não pára, como o comboio, que nem deixa a poeira assentar.

Percebem-me agora? Eu percebo. Sei exactamente o que vou contar ao psicólogo: uma história com Diabos da Tasmânia, lobos, teias e comboios.

E porque quando falo de ansiedade penso em lobos e gigantescos uivos interiores, aqui fica a foto do lobo que apadrinhámos no aniversário do André, para corrigir a ideia de que a existência dos lobos se resume a uivar e a comer avozinhas e porquinhos.
Os lobos também ficam em baixo, também têm feridas, também são fracos. Apresento-vos o Zimbro, o macho ómega (vulgo o que leva na corneta de todos!).

Um lobo manso, doce, por quem só nos podemos enternecer.
Tudo o que eu gostava que a minha ansiedade fosse...

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