20 agosto 2006

The show must go on...

Sinto-me apagável.
Como uma vela ao vento.

A minha censura tem reprimido este tema no blog mas, mesmo sabendo que isto não é um diário, não o vou apagar, como o faço no meu dia-a-dia.

Apagar é um verbo bom para explorar o que se passa comigo.

Sentir-me apagável, é muito diferente de me sentir a apagar. Sinto que os ventos que sopram podem deturpar a minha chama, e quase deitá-la por terra, mas sei que ainda não a conseguem extinguir.
É desgastante manter a chama e, vendo bem, foi assim que me senti durante todo o ano: a tentar manter uma luz constante, que foi sendo derrubada pelos acontecimentos e pelas pessoas.
Da minha vida apagaram-se muitas coisas: o mestrado, os amigos e a avó (em grau crescente de importância).

O mestrado apagou-se como uma luz que se desliga ao deitar. Não fazia mais sentido.

Os amigos apagaram-se, porque é nas piores alturas que vemos com quem contamos. Custou-me a desilusão, mas também a vista se habitua à escuridão.

A avó apagou-se...e nem o eufemismo consegue aliviar a onda de emoções.
Estas luzes são difíceis de apagar. São as luzes fortes que mantêm um eco na retina mesmo depois de apagadas.
Há pessoas que vivem o luto vestidas de preto para que todos os dias não se esqueçam de quem perderam. Eu visto rosa choc, verde lima, branco e vermelho e não há dia que não me lembre. Não porque queira, não porque faça força para isso, mas porque vejo a ausência/presença da minha avó em tudo. Aceitei perdê-la como pessoa ou familiar, mas não aceitei perder o que ela representava para mim.
Pensei que não chorando muito a seguir à sua morte era sinal de que tinha ultrapassado bem a coisa. Mal sabia eu: a morte não se ultrapassa. Paradoxalmente, a morte vive-se.
Eternamente.

Esta não foi a primeira vez que trouxe este assunto incómodo à baila. Não vai ser decerto a última. O blog fica mais triste, mas ainda assim um reflexo mais preciso de mim.
Ninguém quer ler coisas tristes, porque a tristeza pega-se. Ainda assim eu gosto de pegar na tristeza dos outros para compreender melhor a minha.

Vejo este blog como um programa de televisão, em que só passam coisas lights e divertidas. Volta meia troco as voltas à antena. Perde-se na audiência, eu sei, mas como tenho o blog licenciado como autobiográfico e narcisista, não pago coima!
Por isso, tá-se bem!
Siga a emissão!

P.S. - Já que hoje estou um pouco mórbida, e quando me dá para aqui é a valer, quando eu morrer, haja uma alminha que se lembre de me pôr na lápide a seguinte inscrição:
"Até ao próximo programa!" (ponto de exclamação e tudo).
É uma frase que costumo dizer no final das aulas e tem tudo a ver comigo. Demonstra bem o quanto gosto de ver a vida com humor (diferente de a ver por um lado bom), mesmo nas situações mais graves ou estúpidas!

Bom, lembrei-me agora de uma delas. E que se lixe! Vou contar já aqui! Não vou gastar outro post com conversas mórbidas.
Estávamos em conversa em grupo, quando um dos convivas, mais velho, com o seu ar grave e sério, conta uma história sobre a notícia da morte do seu pai. Estava ele no colégio, com os seus onze anos, em plena aula, quando entra o funcionário que pergunta pelo menino "Anda Cá Que o Pai Já Vem" (nome propositadamente alterado para que proteger a identidade da pessoa, com um toque sarcástico fora do comum (dos mortais - note-se a insistência no tema!)). O menino, hoje carregando o peso da idade, levantou-se e disse: Anda Cá Que o Pai Já Vem, sou eu! O funcionário disse então o seguinte: "Faça então o favor de me acompanhar porque o seu pai acabou de falecer." As nossas caras escandalizadas com a frieza da comunicação acompanhavam o silêncio desconfortável. O senhor continuou a história deste modo:
"Eu não consegui dizer nada e os meus colegas ficaram num silêncio sepulcral. Porque, de facto, era disso que se tratava: o meu pai tinha ido para o sepulcro."

Pergunta estúpida: Qual a percentagem de pessoas que esboçaria um sorriso, pronto a disparar uma gargalhada, para coroar o que me parecia uma piada ao mais alto nível de jogo de palavras?
Naquele grupo de pessoas, fui a única.
Percebi que afinal não era para rir (o que achei um enorme desperdício!), e continuei com o meu ar sério e escandalizado.

Para tudo o que não tem cura, rir é mesmo o melhor remédio!


8 comentários:

Le_M_do_Fit disse...

O que posso dizer:
1- não sou o melhor para comentar
2- os meus avós faleceram todos precocemente
3- aprendi que no mundo todo, existe uma mediana que nos traça uma diagonal, ou seja: todos nós em média experienciamos semelhantes graus de dor, prazer, sucesso, etc.. Não somos os mais pobrezinhos, nem os mais felizardos, somos uns pobres diabos que fazem parte da média (não sei se me fiz entender)
4- Sou céptico e não acredito em nada transcendente ao ser humano (o que me faz lamentar muito pouco, pois se algo me acontece, e visto que o processo é tangível, eu tive nas minhas mãos a chave)
5- Aceita isto: somos pereciveis. Jerry Seinfeld (brilhante), num "stand up" dizia: -"atenção às criancinhas, e aos seus olhinhos claros cheios de ternura, pois lembrem-se, eles estão neste mundo só por uma razão...para nos substituir". E tal como tu, eu aqui dei uma gargalhada, mas o assunto era sério, pois esta frase é a chave. É chegada a fase na vida, onde preparas o leito onde te deitas e estimulas o génio da juventude de quem te vai substituir. E não sou só eu que como pai tenho essa missão. Tu como professora, educadora, tens esse condão. Use the force Luke!

Anónimo disse...

Sofia,

Eu acredito na vida para além da morte, mas não naquela bipolaridade Céu/Inferno - que acho pouco coerente. Daí que enfrente a morte de uma forma normal. Porém, isso não me impede de ter sentimentos e muito afecto pelas pessoas queridas; na realidade, o meu pai tem 87 anos, e cada vez mais o afecto cresce; quando não estiver cá, mantém-se esse depósito que devo manter por respeito a ele e ao próximo.

Bem, também fui por um lado muito pessoal; mas fi-lo não porque me contagiasses qualquer tipo de tristeza, mas porque não há realidade mais forte do que a morte e o amor pelos mais próximos.

O que as pessoas chamam tristeza, suponho que, paradoxalmente, alguns psicólogos designam uma variante de afecto -não sei se estou a ser preciso, mas acredito que as ligações afectivas não se perdem, amadurecem, emergem de uma outra forma, e o que temos que fazer é semeá-las no que nos rodeia. A chama não se apaga, acende outras chamas - só é preciso não reprimir a tirsteza e vivê-la com liberdade, por exemplo chorando - coisa tão natural e libertadora...O tempo apagará as tristezas com a sua "sabedoria" que lhe é própria.

Espero não ter sido inoportuno, a franqueza com que escrevestes, essa sim é contagiante.

Luís

Anónimo disse...

Sofia,

É fácil ser-se uma pessoa agradável, basta sorrir em todas as direcções e aquiescer a tudo o que nos dizem… Andamos sempre com a mania de fazer acreditar aos olhos dos outros que estamos felizes, que estamos bem, mas a verdade é que a tristeza também é uma condição da nossa humanidade. Na existência individual de cada um muitos são os momentos de sofrimento. A perda de um ente querido é uma dor das mais pungentes que possamos sentir: a ausência física de quem nos foi, nos é tão especial dilacera-nos a alma e estilhaça-nos o coração.

Porém, porque foi e é tão amada, a sua presença é eterna, por quão eterna tu própria fores. A chama mantém-se acesa e arde intensamente. A lembrança cheia de carinho que tens da tua avó e a gratidão que lhe manifestas mostram a quem leu o teu texto que a tua avó foi como um jardineiro encantado que te fez florir, pois procuras aceitar, com serenidade e humildade, aquilo que está para além da tua vontade.

Chora o que tiveres de chorar, mas não vivas dentro das lágrimas…

Admiro-te pela publicação deste texto tão intimista e fico-te grata pelo privilégio de o partilhares comigo.

Um beijinho, cheio de afecto.
Cláudia

Anónimo disse...

A le m do fit:
Ufa! Por pouco pensei que estavas a alimentar o meu instinto maternal!! Estimular sim, mas por enquanto os filhos dos outros!
Que ninguém pense que me acho uma coitadinha. À falta de melhores razões para chorar tenho estas, e não é por haver gente esfomeada que me doem menos.
Quando remexo neste assunto é na tentativa de exorcizar coisas mal resolvidas, cujo remédio é falar delas até passarem. Pelo menos comigo é assim, e com a maior parte das gaijas também. ;)


Ao Luís:
A minha avó tinha 88 anos e foi um exemplo de vida para mim. Teve um AVC que lhe afectou a fala e quando chegava à tarde do centro de dia punha-se a passar a ferro até ao jantar. Era de facto uma super avozinha e eu fui uma privilegiada por ser neta dela. Ela tinha um carinho especial por mim, porque eu lhe fazia lembrar em muitas coisas a filha que ela havia perdido. A minha tia faleceu com 27 anos, a mesma idade que eu tenho hoje.
A minha avó acabou por transportar os afectos para mim. À falta de uma mãe que suportasse a minha independência e autonomia desde miúda, sem perder o instinto protector que eu obviamente dispensava, esteve lá a minha avó, que soube sempre acarinhar-me e lidar comigo da melhor maneira. No fundo ela percebia que as pessoas que se armam em fortes, têm tantas fraquezas como todas as outras. Só não gostam de o demonstrar.
É curioso eu ser assim e depois estar com estas conversas aqui no blog, mas como faz parte do meu signo ser incoerente, não vamos por aí.
Tens toda a razão no teu diagnóstico: falta-me chorar. Vou chorando por aí às mijinhas, quando ninguém vê, quando escrevo no blog. Claro que não é suficiente e é por isso que dou nós no inconsciente.

À Cláudia:
Apesar do curso natural da vida ser o normal, nunca deixamos de nos comover com a perda. Porque raio estranhamos? Porque raio sentimos pena das pessoas na sua fragilidade dos últimos dias?
A morte não está a provocar em mim uma onda de surpresa. Eu estou é a dissecar os meus sentimentos para conseguir deslindar os porquês. É que racionalizar é comigo e nem assim evito umas lagrimitas, muitas vezes vindas do nada.
Já pensei que a morte dos outros desencadeia em nós a percepção de que estamos vivos e de como essa condição é frágil. Acho que o mais perturbante não é nunca mais ver a outra pessoa, porque ela há-de estar sempre connosco. É pensar que um dia vamos ser nós.
A minha avó aguentou 9 dias no hospital a ver o seu lado direito completamente paralisado - pergunto-me quanto tempo aguentaria eu?
E mesmo assim, lembro-me de a ver sorrir, mesmo que fosse só pela metade.
Era um consolo, a melhor prenda que ela me dava. Melhor do que comer a maça assada inteira - a única coisa que comeu durante o internamento e tinha de ser pela minha mão.

P.S. - Adorei a tua comparação com um jardineiro encantado, porque a minha avó andava sempre de volta das plantas. :)

Le_M_do_Fit disse...

Acho que não compreendeste o que escrevi. Aproveito por isso para agradecer aos meus pais (que perderam os seus pais e alguns irmãos muito precocemente) a educação, a força de encarar a morte e a substituição, e a falta de vida depois da morte como consequência de um mundo que não é eterno e que vale pela herança que deixamos.
PS: pois não é o Sol que gira em torno da Terra; nada se cria, nada se perde, tudo se transforma

Anónimo disse...

Pois, não sei se percebi ao certo, mas do que retirei parece-me que essa é a abordagem correcta, racional e natural.
É por pensar assim, 90% do tempo, que me dou ao luxo de espiolhar porque é nos outros 10% isso não faz sentido.

Le_M_do_Fit disse...

10%?!?! bem bom!! não somos "flawless"...

Anónimo disse...

"Não somos flawless..."

Tenho alguma resistência em acreditar que isso não seja possível de atingir.

Mas já se sabe como são as gaijas. Mesmo que tenham 99,999999% hão-de ficar sempre a pensar que ainda lhes falta um bocadinho. :)