02 outubro 2007

A papinha toda feita!

Os miúdos, se é que se pode chamar miúdos a todos os que diferem menos de uma década de mim, seja para baixo ou para cima, querem a papinha toda feita.
-"A stora não vai dar um papel com estas regras?"
A "stora" sou eu, a catraia.
"Estas regras" são aquelas frases chave que tenho estado a badalar durante todas as aulas, sempre a relembrar o que já aprenderam. Caramba, até eu já me farto de me ouvir a dizer sempre a mesma coisa.

À pergunta estúpida / ingénua do aluno comecei por responder com um sorriso benevolente, ao que parece que o rapaz até levou a mal. Quer-se dizer: venho eu para ali dar aulas e nem dou apontamentos? Nem resumos? Nem quadros explicativos?
A razão do meu sorriso está numa só: aquela pergunta só faz sentido nos dias de hoje. Ou, vá lá, nos primeiros dias do secundário, porque depressa percebemos que as coisas são para sermos nós a fazê-las, seja tirar apontamentos, seja tomar atenção nas aulas para o efeito, seja fazer as nossas próprias cábulas e mnemónicas.
Foi assim que eu aprendi.
Foi assim que eu fui aluna.
E é por isto que hoje, ter sido boa aluna, é um grande handicap para mim como professora.

Há perguntas que os alunos me fazem em que eu me preocupo mais com a validade da pergunta do que com a urgência na resposta.
Hoje tudo isto faz sentido. Meninos respondões, malcriados, sejam miúdos, ou graúdos de já terem filhos deles.
Hoje, se eu repetir numa aula 20 vezes que o "céu é azul" perante uma turma de 20 alunos, constato que, no mínimo:
- dez alunos pedem: "Stora, podia explicar outra vez que eu não ouvi?"
- quatro alunos perguntam: "Mas a stora está a falar do céu ou do sol?
- seis alunos não se pronunciam: ou estão a tomar atenção ou estão, de facto, na lua.

Se pergunto: "Já todos sabem que o céu é azul? Mesmo, mesmo, mesmo? Como se a vossa vida dependesse disso??", obtemos o famoso assentimento à circo:
"- Siiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmm!!!!!!!"
E pergunto eu:
"- Então, de que cor é o céu?"

Para mal dos meus pecados:
- 7 dizem azul
- 8 dizem outra cor
- 3 pedem para explicar de novo
- 2 dizem que pensavam que eu estava a perguntar sobre a lua.

E ainda querem apontamentos...
Deve ser por estarem demasiado esgotados para prestar atenção nas aulas!

Geometria Descritiva é uma disciplina que envolve raciocício, vizualização, abstracção. Puxa pelo calcalhar de Aquiles dos meninos. E em vez de fazerem como a minha outra turma, que encara as dificuldades como desafios a superar, não: preferem contornar os obstáculos da maneira mais fácil que é não os ultrapassar de todo.
Não se perde em conhecimentos da disciplina (que é o menos relevante nisto tudo), mas sim na disciplina de si.

Por isso expresso aqui o meu agradecimento a todos os meus professores que me obrigaram a ficar com calo de escrever, que se recusaram a ditar definições, que me fizeram concentrar-me nas aulas e gerir a memória de forma a reter tudo o que ouvia, e a escrevê-lo de forma organizada, coerente e esteticamente aprazível (sim, com cores), e na hora.

Há um filme (péssimo!), "Evan Almighty", em que a personagem de Deus (cuja genialidade está em ser negro, mas que eu ainda transformava em mulher) explica o que faz para dar às pessoas o que elas querem:
Se pedirmos paciência a Deus, Ele vai-nos dar oportunidades de sermos pacientes.
É dar a rede, e não o peixe.

Eu, que já sou graúda, também gosto da papinha feita: Nestum todo lambusado de mel e propólis. Fora isso, dedico-me à pesca.

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo retrato dos nossos alunos!...extensível aos graúdos...que querem sucesso económico e social enlatado, de preferência com a "rodinha" para abrir. E como estamos na era da economia, não podiamos viver senão na economia de esforços...

Luís

Anónimo disse...

Enquanto seres dotados de inteligência e de curiosidade espera-nos uma vida inteira de descoberta, de saberes e de conhecimento que, numa perspectiva construtivista, se acumulam e se renovam. Por isso, à educação escolar de hoje (e julgo que de sempre…), mais do que transmitir e fazer adquirir conteúdos programáticos e curriculares, exige-se o cumprimento deste ideário: ensinar a aprender a aprender.

Com efeito, a nós, professores, é-nos solicitada a tarefa de dotar os nossos alunos de ferramentas que lhes permitam aumentar os seus potenciais de aprendizagem, isto é, de torná-los capazes de apreenderem o real e o que está para além deste, reflectindo critica e continuadamente sobre eles, agora, enquanto alunos, e pelo resto das suas vidas…

Infelizmente e atendendo ao episódio que relatas (que sabemos ser recorrente em todas as áreas disciplinares), ganhando terreno àquilo que deveria ser a atitude, diria quase inata, do “pensar sobre o próprio pensar”, está a disposição orgulhosa dos nossos alunos da aceitação passiva e do não questionamento do saber que lhes é transmitido ou, como tu tão bem condensaste, “a papinha toda feita…”.

Assim, constando o fosso colossal entre aquilo que os professores valorizam no ensino e aquilo que é valorizado pelos alunos na aprendizagem, novo desafio, mais ambicioso, se nos coloca, parece-me: direccionar o nosso exercício no sentido de gerar nas mentes adormecidas dos nossos alunos conflitos cognitivos AINDA!!! mais estimulantes… como se a necessidade de compreender o Mundo e os seus fenómenos, o Homem e a sua acção já não o fossem suficientemente...



Beijinhos

P.S.: Peço desculpa pelo demora a comentar o teu post.