20 julho 2008

Porque o passado não se arruma em caixas, arruma-se em prendas!

Tinha feito uma vigilância pela manhã, uma reunião pela tarde, com um almoço de colegas entremeado. Era o último dia de serviço na escola.

Era dia 17 de Julho, dia complicado, no qual tento sempre tomar cuidados extra, pois o destino nestes dias teima sempre em me surpreender. Acordei meia hora antes do que devia (às seis e meia da manhã) para me precaver com o trânsito. Não fosse alguma acontecer e eu ter os minutos contados. Já havia escolhido cuidadosamente a roupa no dia anterior, para não perder tempos esquecidos a pensar no que queria vestir. Planeei ao milímetro este dia e rezei para que tudo corresse bem.

Cheguei mais cedo à escola (bom sinal!), dei cumprimento à vigilância (duas horas e meia de silêncio, folhas de resposta, folhas de rascunho, confirmações de cabeçalhos, assinaturas e muita responsabilidade) e fui acabar de combinar o almoço.

- Vamos ao Chinês?
- E peixinho fresco, aqui perto?

Os chineses ficaram a perder.
Partilhámos uma refeição de conversas sobre a vida, os dilemas e a naturalidade com que podemos lidar com eles, trivialidades, viagens, curiosidades, tudo com muita risota à mistura.

Conhecem-se os nomes de pessoas que vemos há dois anos:
- São? És São?
- Não, chamo-me Sofia.
- Ah, Sofia!

Vivi com eles um dia da minha vida, o último que dei a esta escola, numa amizade relâmpago a que os professores estão muito habituados, mas que eu começo agora a compreender.
O ano passado, por esta altura, lamentava os "investimentos de última hora" em pessoas que não iremos voltar a ver. Este ano, tenho uma parte de mim a lamentar.
Por não haver oportunidade durante o ano para conhecer outros colegas e partilhar com eles a refeição, a vida e a dourada escalada com batata cozida e salada.
Por não ter havido mais tempo para falarmos.
Por não ter conhecido mais as pessoas que tanto me surpreenderam no último dia.

Não houve tempo. E há um ano atrás eu olharia para este último dia como o dia de atirar de dinheiro ao vento. Um desperdício em absoluto.

No entanto, e depois do "dá-me um toque para eu ficar com o teu número", do "boa sorte com as preferências do concurso", do "a gente vê-se" e do "eu depois mando um mail", dirigi-me para o carro, num final de tarde tão tórrido quanto se pode imaginar e imaginei-me a dar os últimos passos do fechar de um percurso. E à minha frente se formou a imagem de uma prenda, que já de si fantástica, se embrulha com um enorme e pomposo laço vermelho (na minha cabeça ele era obviamente framboesa com irisados violeta, mas em atenção ao público masculino eu retrato-o simplesmente como vermelho!).

Imaginei, à medida que me afastava, que envolvia a prenda nessa fita colorida, contorcendo-a sobre si própria até fechar num gesto de beleza um capítulo bom e importante da minha vida.

Neste dia atirei dinheiro ao ar, como de costume, mas vim mais rica para casa. Guardei numa caixinha, em forma de prenda, dois anos da minha vida que, mesmo com todas as atribulações e ansiedades, devem ter sido muito bons, porque sempre que olho para o laço vermelho (
framboesa com irisados violeta) não consigo deixar de sorrir.

01 julho 2008

Aprender com os outros

Seria um enorme desperdício de tempo obrigar cada pessoa a descobrir por si só todo o conhecimento acumulado pela civilização humana.

Muitas pessoas poderiam nunca encontrar o sentido da expressão E=mc2, apesar de, em potencial, quase todos os alunos poderem vir a ser um Einstein, já que o senhor não era famoso pelas suas notas.

Aprender com os outros é encarado de uma forma natural: transmitimos conhecimentos, e recebemos conhecimentos que, por sua vez, podemos transmitir e/ou receber de forma crítica.

O conhecimento é como o dinheiro: quanto mais trocas mais benéfico para a economia. Mas acontece que há casos de pessoas que se recusam a receber "dinheiro de mão beijada", entenda-se "uma lição sem bater com a cabeça na parede" - o que se pode chamar um verdadeiro tesouro.

Estas pessoas lançam-me o seu olhar apreensivo, com se eu fosse uma estranha que lhes quisesse impingir uma fatia de um bolo de chocolate, de há uma semana.

Este olhar céptico pode agudizar, e não se detem nem mesmo perante a perspectiva de um bolo fresco, de chocolate, em andares que crescem em helicoidal, perfeitamente adornado com frutas e chantilly e numa sinfonia esteticamente aprazível.
Este olhar em tudo vê veneno e não se convence, ou se apercebe, da riqueza que temos para lhe oferecer.

No que respeita às disciplinas que lecciono, eu podia vender "banha da cobra" e "gato por lebre", que os meus alunos "papavam" tudo o que lhes desse. Mas se ouso passar-lhes um trunfo como o é uma lição que aprendi com um erro, isso eles cospem no chão - directo.

Já não é a primeira vez que tento servir a papinha que vou confeccionando pela vida fora e, por isso, já não é a primeira vez que vejo esta reacção alérgica.
A princípio ficava angustiada: caramba, estou aqui com a papinha feita e eles dão numa de anorexia??
Que ódio! Poupavam tempo e desgostos, erros e fracassos, mas pelos vistos querem provar um pouco de todos eles.
Os alunos querem aprender por si, e quem sou eu para lhes poupar as indigestões futuras??

Dei comigo no final do ano a conversar com um aluno que hesitava em fazer um teste de recuperação para subir a média. Dizia ele:
- Não sei... tenho medo!...

Eu olhei para ele, sorri maternalmente, e disse:
- A vida vai-te ensinar que quem tem medo não consegue fazer nada.
Mas essa é uma lição que não me cabe a mim ensinar-te.

Não está aqui em questão eu ser professora e recusar-me a ensinar um aluno para a vida.
A questão real é que ser professora é um facto, mas também nós temos de aceitar que não podemos nem devemos ensinar tudo. Aceitar é um verbo difícil, sobretudo, de pôr em prática.
Fico naturalmente engasgada com a situação, mas recordo que também eu passei uma infância com problemas de apetite, em que toda a gente me tentava empanturrar com comida e colheres de óleo de fígado de bacalhau. E o apetite chegou a seu tempo, lá para a adolescência, quando o corpo podia dar bom uso ao que eu comia.

Ensinar não é encher de combustível os camiões todos que nos passam pela frente. Apenas aqueles que ainda têm capacidade no depósito, e mais do que tudo, aqueles que se dão ao trabalho de parar na bomba da gasolina e que dali saem com um rumo, um objectivo, uma finalidade.

Caso contrário, é desperdiçar à toa, e a minha mãe sempre me ensinou que não se desperdiça comida.