19 março 2009

Primavera: novo começo, nova escola

São 13h15.
Fecho a porta da sala de aula atrás de mim e aqui vou eu, de regresso para Azeitão.
Entro no autocarro e gosto de ouvir as conversas para descobrir sempre algo novo na paisagem do potencialmente monótono percurso diário.
Oiço atrás de mim:
- Que escola é esta? - pela voz de uma teenager inconsciente.
- É a Secundária de Benfica! - responde a amiga.
- Ai é eeeesssta (pausa). Se eu aqui andasse ia ser um sucesso. Ia marcar a diferença! Olha lá para as gajas: são todas iguais!!

A rapariga que estava atrás de mim era uma mulata, muito bem arranjada, com as suas argolas gordas e douradas e um lenço tigresa a envolver o pescoço. Quer imaginem ou não, eu reconheço-lhe a boa pinta, embora num estilo muito "sui generis". Claro que para ela, uma escola de betos era mesmo só para se poder distinguir da multidão.

Em 30 segundos de observação, a miúda foi suficientemente perspicaz para perceber que aquela escola forma autómatos, que curiosamente já vêm todos formatados. Recordei com algum agrado e ternura, as minhas turmas no Barreiro, onde havia sempre negros e onde todos se davam bem e atiravam as piadas mais racistas uns aos outros, fossem brancos ou pretos, e riam todos, como se nem fosse com eles. A cor não era um problema. O estilo também não.
Quem vai ao cinema e vê aquele anúncio dos dreads, dos betinhos, dos rockers, dos mitras, dos rappers e outros que tanto, percebe porque é que eu sou uma sumólica!
Não é uma questão de não haver diferenças. É valorizar as diferenças. E a mim chateia-me a standardização.
É para isso que a escola lá está: para construir uma matriz, sobre a qual todos podem partir para construir um eu personalizado, ao gosto da vida de cada um.

A escola agora trabalha em competição com os próprios putos, que já têm todos uma matriz: a má educação.
Perguntam-me se podem ouvir música nas aulas, e questionam-me porque não podem ter o chapéu / boné na cabeça quando estão na sala, ou porque não podem mascar pastilhas, ou ter o telemóvel (que vibra!) no bolso. Todas estas questões abrem longos processos de negociação ao que eu costumo opôr um não redundante, sempre com a mais que óbvia justificação, ou então colocar na mesa uma condição impossível.

"- Fica combinado! Se houver um dia em que eu diga "vocês hoje portaram-se bem!" no dia seguinte poderão ouvir música na aula!" - LOL! Nem percebo, porque ficam contentes, mas isto fá-los calar. Até dá pena... é como roubar um chupa a uma criança.

A rapariga no autocarro foi certeira. Aquela escola estava para ela, como um extenso prado verde está para uma papoila. E eu ali, de verde também não tenho nada.
Não me interpretem mal. A escola é boa e não tenho tido nenhuma razão de queixa. Os miúdos é que vivem num mundo diferente do meu. Passam férias no Quénia e no Brasil, vão passar o fim de ano a Londres, têm o topo de gama das Consolas, usufruem de actividades extra-curriculares como equitação e ténis, dedicam-se à aprendizagem de um instrumento musical e muitos estão inscritos na dança.
O dinheiro não dá felicidade, mas contribui para a inteligência. E isto é tão certo como o sol voltar a nascer amanhã.
Tanto a dança como a música requisitam capacidades de visualização e abastracção, capacidades essas essenciais na minha disciplina. Quando estou a falar de múltiplas projecções ortogonais, os alunos conseguem com facilidade montar na sua cabeça uma peça, a partir das suas vistas isoladas. E isto, normalmente, é sempre o cabo dos trabalhos!

Ter o privilégio de poder frequentar a música, a dança ou outro desporto, implica ter benefícios na escola.
Poder conhecer outros países, culturas, habitats, abre-lhes os horizontes, e tudo o que nós dizemos na aula tem para eles um reflexo múltiplo, como um caleidoscópio.

Todos os outros miúdos que não têm a possibilidade de bancar viagens e actividades extra-curriculares, reflectem as nossas palavras num espelho, por vezes baço, o que leva a interpretações pouco claras ou até distorcidas.

Não os censuro por serem privilegiados, por poderem desfrutar de um mundo com mais cambiantes do que o preto e o branco. Só lamento que, nas suas cabeças bem desenvolvidas, não se desenvolva a ideia de que o mundo, ele próprio, é um caleidoscópio de infinitas tonalidades.
Só lamento que estes miúdos não saibam, não vejam, não desconfiem que nem toda a gente vê a cores como eles.
E isso aos meus olhos, torna-os mais pobres, pela falta de consciência do Outro.
É fácil ter a vida fácil, e mais fácil é se ignorarmos que para alguns a vida é difícil.
Alivia o sentimento de culpa, por ter tirado a senha para a boa sorte. Mas será que custa assim tanto, sentir essa culpa? Será que custa mais do que a senha para o infortúnio?
É o mínino que podiam fazer: ter consciência, com uma pontinha de humildade (já nem digo vergonha!).

Só agora tive tempo para me sentar e escrever, ao invés de sentar e dormir.
A minha nova escola é em Lisboa e isso obriga-me a regressar a uma rotina que em tempos conheci: a do levantar cedo e andar de transportes públicos.

Não nego que adoro: ninguém me risca as portas do carro, sou cumprimentada com respeito nos transportes públicos (olá stora!), tenho mais tempo para observar, ouvir e registar o que me rodeia, e sobretudo, tenho mais tempo para mim.

Quando chego a casa é para comer e dormir, mas esta semana já consegui introduzir 5 horas de ginástica. A sensação, lá para as onze da noite, é de ter sido batida com um pau, mas curiosamente não estar roxa!
As noites têm sido santas, as manhãs nem tanto. Eu não fui feita para me levantar às 6 da manhã e já consegui partir um dedo do pé (há 5 anos atrás!) por me levantar a essa hora. O cérebro só entra em velocidade de cruzeiro lá para as 10, mas assim que entro na aula, ligo logo o turbo.

Não tenho suado! Daquele suar de ansiedade que uiva dentro de nós.
Tenho chegado lá e arrasado, ou pelo menos é isso que comando a mim própria antes de atravessar os portões da escola. É uma enorme felicidade para mim, que não é ganhar o Euromilhões, nem fazer uma viagem à volta do mundo. É viver finalmente cada dia como uma pessoa normal. Sem stress.
Nada me perturba o suficiente para me pôr o cérebro a trabalhar a 100 à hora, em desgaste permanente do corpo e mente. No entanto, continuo com a Primavera entalada no nariz e na garganta, e acho que só lá para o Verão é que vou engolir de vez esta alergia.
Menos mal.
Os
sprays e os comprimidos valem a pena, só para ver de novo a natureza a despontar.
Quero lá saber da alergia!
Quando estou lá fora, maravilho-me com a mais pequena coisa, sorrio, e inspiro sempre fundo!

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