[28 de Junho de 2011]
Hoje sonhei, pela segunda vez, que era o dia do meu casamento e tinha acontecido algo de drástico com o meu vestido. Desta vez não havia vestido. Como podia haver, se a primeira prova só vai ser em Agosto? O meu inconsciente lá se lembrou que hoje ainda não era 24 de Setembro, mas ainda assim aquela angústia manteve-se nas primeiras horas da minha manhã.
Já larguei os comprimidos, aqueles que me apertavam as entranhas 24 horas por dia. Fui ao médico e disse-lhe: "acho que preferia estar deprimida do que estar ansiosa". Pelo menos estava sossegada.
Ele deu-me uma nova marca de comprimidos dos antidepressivos e outra de ansiolíticos, para me aliviar "as borboletas na barriga". As borboletas na barriga são coisas boas, diferentes da agressão interior que eu sentia a toda a hora. Ainda assim pareceu-me bem ter uma caixinha destas pílulas milagrosas, não vá eu entrar em pânico nas vésperas e no dia do casamento.
O que é facto é que sumi com a receita, como quem vai ao médico, ouve o que ele tem para dizer e depois faz só o quer e lhe dá na bolha.
Decidi que queria ter descanso e nos dias após ao abandono dos comprimidos vivi feliz, por cada dia me permitir distender o diafragma sem qualquer vestígio de tensão. Ena pá, que vitória do quotidiano!
Esta pequena alegria alimentou-me durante uma semana e a energia fluiu novamente como se eu fosse de novo eu, aquela rapariga com acção, motivação e determinação. É tão bom saber que estas características não se perderam em mim. Simplesmente, tenho esta tendência para adoecer do humor, algo que é motivado por ideias e emoções, mas que depois desencadeia reacções físicas de entorpecimento do corpo e das vontades.
Olho para trás, na tentativa de ganhar distância dos acontecimentos, e consigo ver que há muitos factores que desencadeiam esta instabilidade:
- comecei o ano com uma pilha de coisas para fazer no mestrado.
- mudei de casa em Janeiro, com todas as tristezas de abandonar uma e toda a trabalheira de pôr a funcionar a outra.
- assisti a mortes consecutivas de pessoas próximas, o que me transtorna sempre e me põe a reflectir sobre o sentido da vida e das perdas.
- acompanhei o meu cão no tortuoso caminho da diminuição de todas as suas capacidades até ao último suspiro.
- revivi a sensação de perder novamente um animal de estimação com a operação cirúrgica da cadela e as respectivas complicações e sustos.
- perdi o rasto ao mestrado com os consequentes sentimentos de culpa.
- estou a organizar o casamento com a energia que o meu corpo me disponibiliza.
Olhando para trás, mais atrás ainda do que este ano lectivo, reconheço que os meus períodos de depressão sucedem épocas de grande desgaste emocional: as chatices que se têm com a escola e a profissão, mas também as chatices que eu tive com a construção da casa. Mais recentemente, foram as chatices com a organização do casamento e a operação e convalescença da cadela.
Tudo mói, tudo desgasta.
Começo a reconhecer o padrão: quando ando enervada, irritada, danada com alguma coisa ou alguém, contestando a forma como se trabalha ou como as coisas estão organizadas, é mais que certo que, daí a uns tempos, esteja a passar por um período de entorpecimento mental, que se alimenta de todas as tristezas circunstanciais da minha vida.
E por isso, tenho-me obrigado a levar a vida menos a sério, como se tudo (este gigantesco circo), fosse de facto uma grande brincadeira. Sem muito para me preocupar, sem nada para me culpar, sem que haja nada de dramático e irremediável para eu antever e prevenir.
Uma brincadeira de verão, onde a despreocupação é o lema do dia.
08 julho 2011
12 junho 2011
Preguiça, depressão ou mecanismo de defesa?
A comprimidos, novamente, com uma nova substância activa.
Sem efeitos secundários. Apenas esta urgência em fazer passar as 2 ou 3 semanas que eles demoram para começar a fazer efeito.
Tenho andado numa luta comigo para tentar inverter o estado em que me encontro.
A falta de energia é descomunal. Horas e horas de sono, à noite e à tarde. Uma incontrolável sensação de tristeza e angústia sem uma única razão suficientemente válida. As tarefas que se adiam consecutivamente, os encontros sociais que se evitam, até os mails e os telefonemas ficam por atender.
É muito difícil contrariar a nossa mente e corpo, sobretudo quando estão os dois na mesma equipa: a minha inimiga. É quase como querer acreditar que é de dia, quando há muito que não vemos o sol a brilhar. Ainda assim tenho estado a dizer a mim própria, mesmo que não acredite nem tenha forças para reagir, que é dia.
"- Ana Sofia, já é de dia. Acorda e começa o dia como se fosse de propósito!"
Vou vivendo esta mentira, com algum descaramento, porque eu vejo apenas uma noite prolongada e sombria.
Estou ansiosa por terminar as actividades lectivas: menos um confronto, menos uma desestabilização da minha estrutura ao gerir os conflitos com os miúdos. Até lá o meu objectivo é fazer o que for preciso, acreditar em mentiras se for o caso, para me pôr de pé.
Digo coisas a mim própria como: tu consegues, ignora o que os outros pensam, esquece a pressão que o mundo te coloca, tu é que geres a tua vida. No fundo, sei que me obrigo a acreditar em mentiras, mas a sobrevivência é mais importante e já nem me ralo se é verdade ou não, desde que isso me ajude a sair deste buraco.
Li num livro que estas reacções que o corpo e mente têm, apesar de nos causarem um grande desconforto físico e emocional, têm sempre como objectivo o nosso bem. O meu corpo manda-me parar, talvez porque não se prevê nada de bom a um carro desgovernado que segue a alta velocidade.
Se eu não aproveitar o buraco em que me encontro, para construir e consertar as minhas próprias fundações, esta depressão, que fiquei a saber ser um agravamento da minha distimia, pode passar a ser crónica e obrigar-me a viver durante muito mais tempo na escuridão.
Sem efeitos secundários. Apenas esta urgência em fazer passar as 2 ou 3 semanas que eles demoram para começar a fazer efeito.
Tenho andado numa luta comigo para tentar inverter o estado em que me encontro.
A falta de energia é descomunal. Horas e horas de sono, à noite e à tarde. Uma incontrolável sensação de tristeza e angústia sem uma única razão suficientemente válida. As tarefas que se adiam consecutivamente, os encontros sociais que se evitam, até os mails e os telefonemas ficam por atender.
É muito difícil contrariar a nossa mente e corpo, sobretudo quando estão os dois na mesma equipa: a minha inimiga. É quase como querer acreditar que é de dia, quando há muito que não vemos o sol a brilhar. Ainda assim tenho estado a dizer a mim própria, mesmo que não acredite nem tenha forças para reagir, que é dia.
"- Ana Sofia, já é de dia. Acorda e começa o dia como se fosse de propósito!"
Vou vivendo esta mentira, com algum descaramento, porque eu vejo apenas uma noite prolongada e sombria.
Estou ansiosa por terminar as actividades lectivas: menos um confronto, menos uma desestabilização da minha estrutura ao gerir os conflitos com os miúdos. Até lá o meu objectivo é fazer o que for preciso, acreditar em mentiras se for o caso, para me pôr de pé.
Digo coisas a mim própria como: tu consegues, ignora o que os outros pensam, esquece a pressão que o mundo te coloca, tu é que geres a tua vida. No fundo, sei que me obrigo a acreditar em mentiras, mas a sobrevivência é mais importante e já nem me ralo se é verdade ou não, desde que isso me ajude a sair deste buraco.
Li num livro que estas reacções que o corpo e mente têm, apesar de nos causarem um grande desconforto físico e emocional, têm sempre como objectivo o nosso bem. O meu corpo manda-me parar, talvez porque não se prevê nada de bom a um carro desgovernado que segue a alta velocidade.
Se eu não aproveitar o buraco em que me encontro, para construir e consertar as minhas próprias fundações, esta depressão, que fiquei a saber ser um agravamento da minha distimia, pode passar a ser crónica e obrigar-me a viver durante muito mais tempo na escuridão.
Mais um dia...
Se eu tivesse capacidade, neste momento, dedicava-me à Física.
Não tenho capacidade nem de me fazer mexer... a inércia do meu corpo só é comparada à inércia do meu pensamento, num estado de espírito que só encontra repouso quando me dou ao trabalho de o traduzir por palavras.
Além das mortes todas que este 2011 me trouxe, brindou-me agora com a preocupação da operação cirúrgica da minha cadela, que não correu como se estava à espera, isto é, sem hemorragias nem noites de internamento.
Depois de ontem ter passado pelo centro veterinário fora de horas e ter visto de cá de fora o médico debruçado sobre ela, a abri-la pela segunda vez no mesmo dia para verificar se estava tudo bem lá dentro, desabafei com o André:
"- Eu aguentava isto tudo se as coisas acontecessem mais espaçadas, mas o meu cão morreu há cerca de um mês e a perspectiva de agora perder a cadela aterroriza-me, porque sei que de momento não tenho a estrutura necessária para lidar com isso."
Relembro a mim própria porque decidi deixar os anti-depressivos em Fevereiro: Ah! Era para o corpo se ir habituando e eu poder engravidar depois do casamento.
Raio de razão estúpida quando agora me vejo neste estado. Li livros e pesquisei sobre tudo o que se pode saber sobre a depressão na internet.
É uma doença. Podemos contraí-la tal como uma gripe e não é por isso que ficamos a lamentar coisas parvas como: "eu antes não tinha dores no corpo, nem fungava do nariz! Esta não sou eu!"
Eu sei que esta não sou eu, mas também sei que estou a ser parva por pensar que sintomas são traços de personalidade. Aterroriza-me essa perspectiva, de pensar que vou ser assim para sempre, tal como penso que vou ficar fungosa para sempre, de cada vez que estou mais de duas semanas constipada.
Vai daí, depois de tentados os comprimidos e os livros de auto-ajuda, tomamos aquela decisão que sucede à auto-sentença "estou mesmo pirada e isto não tem cura": ir ao médico... psiquiatra.
Procura-se a definição de psiquiatra, a diferença de psicólogo, o que se pode esperar de uma consulta, os preços, os horários, os testemunhos... E marca-se a consulta. Quando marcamos a consulta, e eu ainda adiei por uns dias, estamos definitivamente na calha para ter um encontro com alguém que eu só espero não ser um fiasco.
Na minha cabeça, a última coisa que quero é que ele me diga que eu tenho de voltar à comprimidagem. Não é que me tenha feito mal, mas algo me diz que se o meu problema se resolvesse SÓ com comprimidos, já estaria resolvido.
Retomo a história da minha vida na minha cabeça e tento precisar o momento em que tudo isto começou e o que mudei na minha vida que tenha de facto desencadeado este estado de (des)ânimo.
Toda a gente já passou por momentos menos bons. Toda a gente já esteve na fossa durante mais tempo do que aquele que seria esperado. Mas de tudo isso, por muito que não nos pareça na altura, se sobrevive.
Sobrevive-se porque sabemos o que nos pôs assim. Não foi uma nem duas razões, são sempre um batalhão delas, mas reconhecemos facilmente aquela que está à cabeça nas nossas preocupações.
Agora, tal como há cerca de ano e meio, eu não sei o que me põe "assim". Sei que odeio estar "assim" e que estar "assim" é o principal responsável para eu agir contra a minha maneira de ser, princípios e valores.
Quando digo para mim "esta não sou eu" estou na realidade a dizer "nem quero acreditar no que me transformei". Quero pensar que, de alguma forma, poderei retomar a minha identidade num futuro próximo.
É isso que espero do psiquiatra: que me abra os olhos para eu ver onde está a raiz do problema, porque eu não o encontro sozinha...
Não tenho capacidade nem de me fazer mexer... a inércia do meu corpo só é comparada à inércia do meu pensamento, num estado de espírito que só encontra repouso quando me dou ao trabalho de o traduzir por palavras.
Além das mortes todas que este 2011 me trouxe, brindou-me agora com a preocupação da operação cirúrgica da minha cadela, que não correu como se estava à espera, isto é, sem hemorragias nem noites de internamento.
Depois de ontem ter passado pelo centro veterinário fora de horas e ter visto de cá de fora o médico debruçado sobre ela, a abri-la pela segunda vez no mesmo dia para verificar se estava tudo bem lá dentro, desabafei com o André:
"- Eu aguentava isto tudo se as coisas acontecessem mais espaçadas, mas o meu cão morreu há cerca de um mês e a perspectiva de agora perder a cadela aterroriza-me, porque sei que de momento não tenho a estrutura necessária para lidar com isso."
Relembro a mim própria porque decidi deixar os anti-depressivos em Fevereiro: Ah! Era para o corpo se ir habituando e eu poder engravidar depois do casamento.
Raio de razão estúpida quando agora me vejo neste estado. Li livros e pesquisei sobre tudo o que se pode saber sobre a depressão na internet.
É uma doença. Podemos contraí-la tal como uma gripe e não é por isso que ficamos a lamentar coisas parvas como: "eu antes não tinha dores no corpo, nem fungava do nariz! Esta não sou eu!"
Eu sei que esta não sou eu, mas também sei que estou a ser parva por pensar que sintomas são traços de personalidade. Aterroriza-me essa perspectiva, de pensar que vou ser assim para sempre, tal como penso que vou ficar fungosa para sempre, de cada vez que estou mais de duas semanas constipada.
Vai daí, depois de tentados os comprimidos e os livros de auto-ajuda, tomamos aquela decisão que sucede à auto-sentença "estou mesmo pirada e isto não tem cura": ir ao médico... psiquiatra.
Procura-se a definição de psiquiatra, a diferença de psicólogo, o que se pode esperar de uma consulta, os preços, os horários, os testemunhos... E marca-se a consulta. Quando marcamos a consulta, e eu ainda adiei por uns dias, estamos definitivamente na calha para ter um encontro com alguém que eu só espero não ser um fiasco.
Na minha cabeça, a última coisa que quero é que ele me diga que eu tenho de voltar à comprimidagem. Não é que me tenha feito mal, mas algo me diz que se o meu problema se resolvesse SÓ com comprimidos, já estaria resolvido.
Retomo a história da minha vida na minha cabeça e tento precisar o momento em que tudo isto começou e o que mudei na minha vida que tenha de facto desencadeado este estado de (des)ânimo.
Toda a gente já passou por momentos menos bons. Toda a gente já esteve na fossa durante mais tempo do que aquele que seria esperado. Mas de tudo isso, por muito que não nos pareça na altura, se sobrevive.
Sobrevive-se porque sabemos o que nos pôs assim. Não foi uma nem duas razões, são sempre um batalhão delas, mas reconhecemos facilmente aquela que está à cabeça nas nossas preocupações.
Agora, tal como há cerca de ano e meio, eu não sei o que me põe "assim". Sei que odeio estar "assim" e que estar "assim" é o principal responsável para eu agir contra a minha maneira de ser, princípios e valores.
Quando digo para mim "esta não sou eu" estou na realidade a dizer "nem quero acreditar no que me transformei". Quero pensar que, de alguma forma, poderei retomar a minha identidade num futuro próximo.
É isso que espero do psiquiatra: que me abra os olhos para eu ver onde está a raiz do problema, porque eu não o encontro sozinha...
02 maio 2011
Para tudo há um equilíbrio
Foi isto que aprendi pela vida fora, que tudo tem o seu oposto, que há um Yin para um Yang, um branco para um preto, um sorriso para uma lágrima...
Eu, que sou balança, sei muito bem o que é isso de (des)equilíbrios. E é por isso que cada vez que me deslumbro com a mais pequena coisa, faço questão de dar graças por ela.
Dou graças pelo cheirinho a erva molhada pela manhã... é impagável!
Dou graças pelos cúmulo-nimbos que tenho visto (ou pelo menos aqueles que não originam granizos) como enormes algodões-doce no céu, apetecíveis e inalcançáveis.
Dou graças pelo raio de sol que espreita por entre o temporal, a erva pequenina que vinga na calçada, dou graças... por estar aqui a escrever pelos meus próprios dedos, ainda que a minha disposição seja negra...
Há um quê de incompreensão na tristeza. Uma incompreensão que rapidamente vira raiva e logo, logo, frustração. Não somos mesmo nada, nem ninguém... Somos um grão de areia pequenino que se revolta.
E eu sou das que se revolta, claro. Tristezas? Mortes? Perdas? Tretas! Recuso-me a aceitar, a conformar-me. Que treta essa da conformação! "Não aceito!" foi o que pensei quando atirei com a seringa da água no chão da cozinha, depois de ter acabado de ver o meu cão a morrer.
Atirei a seringa de plástico, mas apetecia-me mandar a loiça toda. Contudo, nem a seringa, nem nenhum dos meus pratos e copos, iria mudar alguma coisa. Ao contrário do que possamos pensar, não podemos mudar nada do que nos acontece, embora possamos fazer muita coisa acontecer... O que podemos é dar sentido, às experiências, às tristezas, às alegrias e à vida.
Uma amiga minha dizia-me ao telefone as palavras sábias que a mãe dela, já falecida, lhe tinha deixado:
- Na vida temos de estar preparados para tudo: para perder os pais, os filhos, qualquer coisa.
Nunca ninguém me tinha ensinado esta.
Temos de estar preparados para não sermos nada. Para que tudo o que mais gostamos nos possa ser repentinamente tirado. Temos de estar preparados para perder, para abrir mão.
E foi por estes dias que percebi: quanto mais velhos ficamos, mais amargurados nos tornamos, porque vamos arrecadando perdas ao longo da vida, com duas mãos cheias de nadas.
E logo de seguida outro insight: ainda me falta tanto para perder, para chorar, para me conformar...
Ainda tenho uma vida inteira para repetir a dose que estou a passar este ano, vezes sem conta.
Procuro por isso dar sentido a tudo e tentar encontrar algo que faça compensar o meu coração pequenino, de tão mirradinho que está. Assusta-me pôr em causa que isto tudo não tenha, na realidade, sentido nenhum, mas depois lembro-me que já vivi momentos tão felizes em que a minha alegria quase parecia ser pecado, por ser tanta e tão intensa. Tento refugiar-me nesses momentos, pensando que se eles não equilibram o meu presente, então o futuro o fará.
Um dia atrás do outro. Horas em que se chora, muito, em que chorar pelas perdas recentes se confunde com o chorar das perdas antigas. Amealhamos tristezas pela vida fora e sempre que colhemos mais uma, choram-se todas as outras.
Apetece-me deitar esta tristeza toda fora, mas algo me diz que não é assim que se faz. Que se cresce com ela e tal como o estrume (é tudo a mesma merda!) ela alimenta pequenas preciosidades que de tempos a tempos florescem na nossa vida.
Na última semana, pude testemunhar como o André se manteve do meu lado, me deu força, alento e determinação para seguir nesta provação. Se dúvidas houvesse porque vou casar com este homem, todas se tinham dissipado nos últimos dias. Ele esteve do meu lado, por vezes carregando-me e, já lho disse, não o teria conseguido sem ele.
E é isto.
Recuso-me a ceder à tristeza, o que é muito diferente de não estar triste. Recuso-me a coleccionar perdas, para me dedicar às preciosidades com que a vida me presenteia.
Porque a seguir à chuva e trovoada, o sol também brilha.
Porque o sentido da vida não se resume ao correcto funcionamento das máquinas a que damos vida.
Porque é preciso um céu inteiro cheio de escuridão para acentuar a beleza da mais pequena estrela.
Porque as nossas vidas são podadas apenas para crescermos ainda com mais força.
Eu, que sou balança, sei muito bem o que é isso de (des)equilíbrios. E é por isso que cada vez que me deslumbro com a mais pequena coisa, faço questão de dar graças por ela.
Dou graças pelo cheirinho a erva molhada pela manhã... é impagável!
Dou graças pelos cúmulo-nimbos que tenho visto (ou pelo menos aqueles que não originam granizos) como enormes algodões-doce no céu, apetecíveis e inalcançáveis.
Dou graças pelo raio de sol que espreita por entre o temporal, a erva pequenina que vinga na calçada, dou graças... por estar aqui a escrever pelos meus próprios dedos, ainda que a minha disposição seja negra...
Há um quê de incompreensão na tristeza. Uma incompreensão que rapidamente vira raiva e logo, logo, frustração. Não somos mesmo nada, nem ninguém... Somos um grão de areia pequenino que se revolta.
E eu sou das que se revolta, claro. Tristezas? Mortes? Perdas? Tretas! Recuso-me a aceitar, a conformar-me. Que treta essa da conformação! "Não aceito!" foi o que pensei quando atirei com a seringa da água no chão da cozinha, depois de ter acabado de ver o meu cão a morrer.
Atirei a seringa de plástico, mas apetecia-me mandar a loiça toda. Contudo, nem a seringa, nem nenhum dos meus pratos e copos, iria mudar alguma coisa. Ao contrário do que possamos pensar, não podemos mudar nada do que nos acontece, embora possamos fazer muita coisa acontecer... O que podemos é dar sentido, às experiências, às tristezas, às alegrias e à vida.
Uma amiga minha dizia-me ao telefone as palavras sábias que a mãe dela, já falecida, lhe tinha deixado:
- Na vida temos de estar preparados para tudo: para perder os pais, os filhos, qualquer coisa.
Nunca ninguém me tinha ensinado esta.
Temos de estar preparados para não sermos nada. Para que tudo o que mais gostamos nos possa ser repentinamente tirado. Temos de estar preparados para perder, para abrir mão.
E foi por estes dias que percebi: quanto mais velhos ficamos, mais amargurados nos tornamos, porque vamos arrecadando perdas ao longo da vida, com duas mãos cheias de nadas.
E logo de seguida outro insight: ainda me falta tanto para perder, para chorar, para me conformar...
Ainda tenho uma vida inteira para repetir a dose que estou a passar este ano, vezes sem conta.
Procuro por isso dar sentido a tudo e tentar encontrar algo que faça compensar o meu coração pequenino, de tão mirradinho que está. Assusta-me pôr em causa que isto tudo não tenha, na realidade, sentido nenhum, mas depois lembro-me que já vivi momentos tão felizes em que a minha alegria quase parecia ser pecado, por ser tanta e tão intensa. Tento refugiar-me nesses momentos, pensando que se eles não equilibram o meu presente, então o futuro o fará.
Um dia atrás do outro. Horas em que se chora, muito, em que chorar pelas perdas recentes se confunde com o chorar das perdas antigas. Amealhamos tristezas pela vida fora e sempre que colhemos mais uma, choram-se todas as outras.
Apetece-me deitar esta tristeza toda fora, mas algo me diz que não é assim que se faz. Que se cresce com ela e tal como o estrume (é tudo a mesma merda!) ela alimenta pequenas preciosidades que de tempos a tempos florescem na nossa vida.
Na última semana, pude testemunhar como o André se manteve do meu lado, me deu força, alento e determinação para seguir nesta provação. Se dúvidas houvesse porque vou casar com este homem, todas se tinham dissipado nos últimos dias. Ele esteve do meu lado, por vezes carregando-me e, já lho disse, não o teria conseguido sem ele.
E é isto.
Recuso-me a ceder à tristeza, o que é muito diferente de não estar triste. Recuso-me a coleccionar perdas, para me dedicar às preciosidades com que a vida me presenteia.
Porque a seguir à chuva e trovoada, o sol também brilha.
Porque o sentido da vida não se resume ao correcto funcionamento das máquinas a que damos vida.
Porque é preciso um céu inteiro cheio de escuridão para acentuar a beleza da mais pequena estrela.
Porque as nossas vidas são podadas apenas para crescermos ainda com mais força.
29 abril 2011
O meu cão morreu...
Quando ontem liguei desesperada para o André soltei em choro a seguinte frase:
- O meu cão... ... .... morreu.
Demorei tempo a articular o verbo, porque ao verbalizar-se torna-se real.
Tinha vindo do Pilates e estava, como nos últimos dias, numa ânsia de chegar a casa. Queria estar perto do bicho, no caso de ele precisar de alguma coisa. Chegava a vê-lo pela janela e, se lhe reconhecia alguma tentativa para se levantar, ia imediatamente lá fora ajudá-lo nas suas vontades.
De manhã, antes de sair, tinha tentado dar-lhe água, mas ele, pela primeira vez, não quis nem saber. Quando cheguei a casa fui, por isso, de seringa em riste para hidratar o animal, que este calor de Abril é impróprio para bichos de pelo comprido.
Foi ao virá-lo que vi o corpo dele a reagir com barulhinhos e espasmos nas pernas.
Assustei-me e pensei: "está a acontecer"...
Fiquei ali junto dele a fazer-lhe festas na cabeça e a falar de mansinho com ele. Nunca vi ninguém morrer à minha frente e digo-vos: é violento. Violento a ponto de eu querer exorcizar essa imagem, e estar aqui a escrever a quente, dado o abalo que isso me causou.
Assisti a tudo: aos pulmões deixarem de expandir, aos reflexos de inspiração de ar, à última urina despejada involuntariamente. No final, pus-lhe a mão sobre o focinho e não senti o seu bafo quente e húmido. Os olhos estavam perdidos no infinito, vidrados, como se o meu Fredy já nem estivesse lá. O coraçãozinho dele batia, contudo, ritmadamente, levantando o pelo. Pus a mão sobre ele e senti o pum-pum, pum-pum, pum-pum até só sentir silêncio.
Levantei-me do que me parecera uma eternidade, a assistir o meu próprio cão na sua morte, ajudando-o até ao fim a ultrapassar o malfadado momento, e rezando a Deus, pelo meio, que não o fizesse sofrer mais e lhe desse descanso rápido. Coloquei o meu cotovelo sobre o muro e chorei ali as minhas lágrimas, sem querer saber dos vizinhos que me vissem, sem querer saber se me questionavam por me dedicar assim a um animal.
Perdi um familiar, não interessa se é pessoa ou não. Para mim era um fã, que arrebitava a orelha cada vez que me via, como se a felicidade tivesse entrado pela porta.
Consola-me saber que fiz tudo o que pude, que o acompanhei nestes últimos dias e horas, proporcionando-lhe a melhor qualidade de vida que a sua saúde permitia.
Trouxe os cães para minha casa a 20 de Março e sei que ele se foi abaixo aqui comigo, porque sabia que o podia fazer, em paz e dignidade. Os meus pais não teriam feito nem um décimo do que eu fiz por ele.
- O meu cão... ... .... morreu.
Demorei tempo a articular o verbo, porque ao verbalizar-se torna-se real.
Tinha vindo do Pilates e estava, como nos últimos dias, numa ânsia de chegar a casa. Queria estar perto do bicho, no caso de ele precisar de alguma coisa. Chegava a vê-lo pela janela e, se lhe reconhecia alguma tentativa para se levantar, ia imediatamente lá fora ajudá-lo nas suas vontades.
De manhã, antes de sair, tinha tentado dar-lhe água, mas ele, pela primeira vez, não quis nem saber. Quando cheguei a casa fui, por isso, de seringa em riste para hidratar o animal, que este calor de Abril é impróprio para bichos de pelo comprido.
Foi ao virá-lo que vi o corpo dele a reagir com barulhinhos e espasmos nas pernas.
Assustei-me e pensei: "está a acontecer"...
Fiquei ali junto dele a fazer-lhe festas na cabeça e a falar de mansinho com ele. Nunca vi ninguém morrer à minha frente e digo-vos: é violento. Violento a ponto de eu querer exorcizar essa imagem, e estar aqui a escrever a quente, dado o abalo que isso me causou.
Assisti a tudo: aos pulmões deixarem de expandir, aos reflexos de inspiração de ar, à última urina despejada involuntariamente. No final, pus-lhe a mão sobre o focinho e não senti o seu bafo quente e húmido. Os olhos estavam perdidos no infinito, vidrados, como se o meu Fredy já nem estivesse lá. O coraçãozinho dele batia, contudo, ritmadamente, levantando o pelo. Pus a mão sobre ele e senti o pum-pum, pum-pum, pum-pum até só sentir silêncio.
Levantei-me do que me parecera uma eternidade, a assistir o meu próprio cão na sua morte, ajudando-o até ao fim a ultrapassar o malfadado momento, e rezando a Deus, pelo meio, que não o fizesse sofrer mais e lhe desse descanso rápido. Coloquei o meu cotovelo sobre o muro e chorei ali as minhas lágrimas, sem querer saber dos vizinhos que me vissem, sem querer saber se me questionavam por me dedicar assim a um animal.
Perdi um familiar, não interessa se é pessoa ou não. Para mim era um fã, que arrebitava a orelha cada vez que me via, como se a felicidade tivesse entrado pela porta.
Consola-me saber que fiz tudo o que pude, que o acompanhei nestes últimos dias e horas, proporcionando-lhe a melhor qualidade de vida que a sua saúde permitia.
Trouxe os cães para minha casa a 20 de Março e sei que ele se foi abaixo aqui comigo, porque sabia que o podia fazer, em paz e dignidade. Os meus pais não teriam feito nem um décimo do que eu fiz por ele.
Sei que nunca terei um cão igual a este: tão mimoso, tão cuidadoso connosco, tão vigilante, sempre a tomar conta de nós. Mas agradeço os 14 anos, uma autêntica benção, que me foram concedidos, para tirar partido de tudo o que este cão tinha de bom. Deu-me alegrias até ao fim, tal como eu lhe dei festas até ao seu último suspiro.
E sei que, onde quer que esteja, vai estar, como era seu costume, a olhar por mim.
26 abril 2011
O meu Marley...
Forcei-me a escrever, porque estou num farrapo, e porque acredito que verbalizar é sempre o melhor remédio.
Ainda falta algum tempo para terminar a aula que eu devia estar a dar aos meus alunos: hoje faltei.
Quem me conhece sabe que eu só falto por razões de força maior. Odeio ter de pegar no telefone e dizer que não vou conseguir cumprir as minhas obrigações, mas foi isso que hoje fiz.
A minha vida mudou com aquela trovoada do dia 18 de Abril. A semana anterior tinha sido profícua em trabalho, mas de repente surgiu uma urgência. O meu cão... a saúde do meu cão deteriorou-se bastante e, na última semana, tive de o ver definhar e perder as suas capacidades. Deixou de se conseguir levantar sozinho, deixou de andar, deixou de conter as fezes, e deixou de se preocupar por estar deitado sobre a própria urina.
Em casos destes, fazemos como com as pessoas: arregaçamos as mangas.
Nos dois últimos dias deixou de comer, até o Nestum com que eu disfarçava os comprimidos todos que tinha de lhe dar.
Hoje de manhã cedo fui ao veterinário que me disse: é falta de vontade.
Falta de vontade...
Não é de estar vivo, mas falta de vontade de estar assim.
Temos de o virar, de o levantar, de o transportar numa maca improvisada com toalhas de praia, temos de lhe dar água por uma seringa e temos de lhe fazer a higiene diária, tal como faríamos a qualquer velhinho acamado.
Custa-me tanto vê-lo assim... Parte-me o coração vê-lo tão murchinho e incapacitado, mas ainda assim capaz de compor aquele olhar expressivo que ele faz sempre que me reconhece ao longe. É um doce, aquele cão, e acompanhou a minha vida durante 14 anos, um autêntico feito para um cão deste porte.
Catorze anos é muito tempo para nos afeiçoarmos à sua presença, para, de repente, termos de nos despedir.
Tenho chorado imenso, mais do que aqui posso descrever, porque o estado dele me corta o coração, porque odeio ter de pensar que um dia destes vou lá fora ao quintal e já não o vou ver mais, porque vou ter que o guardar em memória e não sei como se arquiva a boa sensação de lhe passar a mão pelo pêlo fofo e luzidio...
Já desabafei e não estou melhor.
Guardo esta revolta de quem está farta de assistir a mortes este ano. Estou danada com o sentido da vida, porque nada disto tem sentido, e tudo isto é demais! Porra, é demais!
Não consigo imaginar o que pode equilibrar este sofrimento e estas perdas, consecutivas. Tudo fica um pouco mais descolorido, um pouco menos brilhante, de dia para dia. E eu que sou pintora, não tenho arte para saber o que mais fazer...
Ainda falta algum tempo para terminar a aula que eu devia estar a dar aos meus alunos: hoje faltei.
Quem me conhece sabe que eu só falto por razões de força maior. Odeio ter de pegar no telefone e dizer que não vou conseguir cumprir as minhas obrigações, mas foi isso que hoje fiz.
A minha vida mudou com aquela trovoada do dia 18 de Abril. A semana anterior tinha sido profícua em trabalho, mas de repente surgiu uma urgência. O meu cão... a saúde do meu cão deteriorou-se bastante e, na última semana, tive de o ver definhar e perder as suas capacidades. Deixou de se conseguir levantar sozinho, deixou de andar, deixou de conter as fezes, e deixou de se preocupar por estar deitado sobre a própria urina.
Em casos destes, fazemos como com as pessoas: arregaçamos as mangas.
Nos dois últimos dias deixou de comer, até o Nestum com que eu disfarçava os comprimidos todos que tinha de lhe dar.
Hoje de manhã cedo fui ao veterinário que me disse: é falta de vontade.
Falta de vontade...
Não é de estar vivo, mas falta de vontade de estar assim.
Temos de o virar, de o levantar, de o transportar numa maca improvisada com toalhas de praia, temos de lhe dar água por uma seringa e temos de lhe fazer a higiene diária, tal como faríamos a qualquer velhinho acamado.
Custa-me tanto vê-lo assim... Parte-me o coração vê-lo tão murchinho e incapacitado, mas ainda assim capaz de compor aquele olhar expressivo que ele faz sempre que me reconhece ao longe. É um doce, aquele cão, e acompanhou a minha vida durante 14 anos, um autêntico feito para um cão deste porte.
Catorze anos é muito tempo para nos afeiçoarmos à sua presença, para, de repente, termos de nos despedir.
Tenho chorado imenso, mais do que aqui posso descrever, porque o estado dele me corta o coração, porque odeio ter de pensar que um dia destes vou lá fora ao quintal e já não o vou ver mais, porque vou ter que o guardar em memória e não sei como se arquiva a boa sensação de lhe passar a mão pelo pêlo fofo e luzidio...
Já desabafei e não estou melhor.
Guardo esta revolta de quem está farta de assistir a mortes este ano. Estou danada com o sentido da vida, porque nada disto tem sentido, e tudo isto é demais! Porra, é demais!
Não consigo imaginar o que pode equilibrar este sofrimento e estas perdas, consecutivas. Tudo fica um pouco mais descolorido, um pouco menos brilhante, de dia para dia. E eu que sou pintora, não tenho arte para saber o que mais fazer...
18 março 2011
O que quer uma mulher?
Foi esta a pergunta que Freud levou para a tumba.
Não qual a razão da existência humana, não qual o sentido da vida, mas o que quer uma mulher.
Não posso deixar de fazer referência ao facto de que entrei em 2011com funerais. Já lá vão três!
Um deles foi o de um aluno meu do ano passado. E como estas mortes antecipadas doem e desencadeiam em nós uma enorme incompreensão. Não podemos dizer: "Olha, já está no descanso, já não sofre mais, aquilo também não era viver."
Não nos podemos conformar em nenhum destes resguardos, que apenas querem mostrar como a morte deve normal e aceitável. Não é, nunca é. Tentamos de tudo, fingimos para nós e para os outros, mas é a memória que nos trai. Medo de esquecer, e lembrança de tudo o que aconteceu de bom.
Como se pode ver, tenho andado num enorme vórtice de pensamento sobre o sentido da Vida, no geral, e da minha vida, em particular. Que sentido tem tudo isto?
Que sentido tem perdermos o nosso companheiro de equipa? Que sentido tem perdermos aquele com que partilhámos uma vida? Que somos nós afinal, senão uma equipa com um jogador a menos, que invariavelmente põe as culpas no Árbitro desta partida a que chamamos Vida. As minhas palavras são melosas, mas o seu conteúdo não.
Doeu-me, mais do que constatar ausências, os desfasamentos que a morte cria na vida dos outros. As redefinições de identidade que isso pode causar. E logo eu, sempre atenta, sempre precavida, penso: como seria se fosse comigo? Se fosse eu a perder o meu marido? Se fosse eu a perder o meu filho?
Estou a atravessar uma das mais difíceis fases da minha vida, daquelas que envolvem escolhas, opções por um lado e recusas ao outro. Significa ganhar, perdendo, abdicando.
Talvez eu tenha deixado estas escolhas para demasiado tarde e, talvez por isso, tenha sujeitado o meu corpo, e a minha saúde, ao esgotamento e à depressão. A luta é comigo, contra mim. Eu versus eu. O André ajuda, mas não pode percorrer este caminho por mim. Tenho de ser eu a fazê-lo. E questiono como seria, se não eu o tivesse ao meu lado... Sinto-me ainda tão pequenina, tão cheia de coisas para aprender (que no fundo é ser vazia), tão impotente perante os desafios que se me colocam, mas acima de tudo, aqueles que coloco a mim própria.
Horas, que já devem somar dias inteiros de conversas, sobre mim, as minhas reacções, o que eu faço e não faço, mas que não controlo. E nada.
Nada.
Nem quero mais explorar como me sinto, ou quais são os meus sintomas. Eu estou é profundamente frustrada por nunca mais dar com o diagnóstico. E sem ele, não há cura.
Não sei a raiz do problema, não sei o que tenho de atacar. Os comprimidos são uma ajuda: é comprar tempo e alguma energia para atacar.
Sinto-me pequena, ínfima, perante aquilo que eu posso ser para mim própria: o meu maior e mais devastador inimigo, aquele que num golpe afiado e preciso, me deita por terra e me quebra as rótulas para não mais me levantar.
Posso pôr a culpa em alguma coisa? Claro que sim, em mim.
Fui eu que criei todo este teatro, toda esta fartura de angústias para eu me rebolar.
Que foi que eu fiz?
Tentei fazer como Ícaro. Quis tocar o sol, quis tudo da vida, não suportei abdicar de nada. Queria mais e mais e tudo bem e perfeito.
O Ícaro espetou-se no chão. E eu também.
Há um ponto em que pagamos pela nossa parvoíce na vida. É quando o nosso corpo dá sinal. O meu tem dado sinais, mas age sem eu lhe mandar e sem o intentar. Experimento esta sensação de descontrole de mim, a começar pelas minhas reacções físicas, há já alguns anos. Primeiro, com os sintomas da ansiedade, mais recentemente com os sintomas da depressão, e pergunto-me: o que estás tu à espera, Ana Sofia, para tomar nas mãos as rédeas da tua própria vida?
Anima-me a pergunta, derrota-me a resposta: não sei.
A esta angústia de ser uma menina irreverente que não cumpre regras, uma indisciplinada na minha sala de aula, uma desatenta às minhas próprias ordens, sem ter nunca a possibilidade de pôr esta fedelha na rua, tenho a somar a vergonha.
Claro, a vergonha.
Eu sou a personificação de tudo o que desprezo, e sou-o, contudo.
Faço tudo mal, ao contrário de tudo o que me rege, mas faço-o, contudo.
E o que me sobra ao fim do dia? Lidar com tudo isto e com a perspectiva que os outros têm de mim, e que reconheço que seria a minha, não fosse esta a minha condição.
Como sempre, aplicando as leis cristãs e das fábulas: tudo acontece, por uma razão.
E aquilo que se assume como uma condição muito pessoal, que envolve o domínio físico e psicológico da minha pessoa, rapidamente extravasa para se constituir como uma metáfora do meu domínio profissional.
Hoje vejo os meus alunos com outros olhos e lamento ter-lhes exigido o cumprimento de tarefas e prazos, sem considerar que eles os falhassem por outra razão que não fosse a preguiça.
Se um aluno está distraído, distante, calado e sem motivação, eu já não venho com aquela lenga-lenga do "isto no meu tempo não era assim, nós cumpríamos o que era pedido, esta geração vai por um caminho que não sei onde vai dar!"
Hoje sei que nem tudo o que fazemos depende de o querermos, ou não, fazer. Há coisas que não queremos fazer e fazemos, e outras que queremos fazer e não ficam feitas.
Olho para esses meus alunos, sem me preocupar em ser branda nem em desculpabilizá-los pela sua preguiça. Olho-os e vejo iguais, a mim. Pobres desgraçados encerrados num mundo que não controlam, como drogados. Remetidos a um vício do qual já não conseguem sair sozinhos.
Eu sei qual foi o meu vício: foi acumular coisas para fazer, que foi só tudo o que me apareceu pela frente.
Mas sei, que a juntar ao vício, e é por isso que, de resto, caímos nele, houve ali uma falta, uma ausência. A morte da minha auto-estima.
Eu tinha de ser mais, fazer mais, obter mais, porque eu, tal como era e sou, não era suficiente.
Eu não era suficiente... Que afirmação dolorosa, tanto mais quando a imagino proferida na boca de qualquer dos meus alunos.
"Tu não és suficiente? Isso é que era bom! Tu és um ser excepcional e único!"
Esta seria a minha abordagem que, embora sempre inflamada é sempre sentida. Para os outros.
Acho que todos são seres especiais e fabulosos, mas eu não. Eu podia ser sempre um bocadinho melhor.
Esta falha, no meu amor próprio, em muito tem a ver com o que eu descobri, esta semana, ser o nosso "clube de fãs".
O meu clube de fãs, durante a minha infância resumiu-se à minha família. E, porque eu sempre fui uma rapariguinha determinada, eles nunca pensaram ser necessário alimentar-me o ego. Nunca vi ninguém com pompons a saltar e a gritar o meu nome. Quase que era esperado que eu fosse assim. "Assim," não era ser o melhor possível, mas ser a melhor.
Quando disse ao meu pai que tinha tido um 20 a História de Arte na nota de final de ano, ele não me deu os parabéns. Na altura, encarei como se ainda me tivesse faltado qualquer coisa. Devo ter achado que tinha mesmo era de ter arrancado um 21 ao professor...
Hoje sei, com muito custo, porque não foi esta a minha leitura durante as últimas décadas, que ninguém comentou ou valorizou os meus sucessos, porque todo o meu clube de fãs, não esperava de mim outra coisa.
Quer dizer, quando o Sporting ganha, faz-se uma festa.
Quando o Porto perde é que a malta se chateia.
O meu pai redimiu-se na minha fita de fim de curso, com palavras que me fizeram chorar compulsivamente, e que traduzem a melhor manifestação que se pode ter de um fã . Ainda assim, nunca me as repetiu em voz, e nunca se falou sobre isso. Li-as em deferido e guardei-as no meu íntimo.
Relembro-me delas, sempre que não acredito no meu poder, e que é quase sempre. Aliás, o efeito que elas têm nem é nenhum. Acho sempre que a pessoa estava só a ser simpática, porque eu sou do mais cruel comigo própria e faço-me acreditar que eu tenho de arrancar 21's à vida, coisa que muito dificilmente vou conseguir.
A propósito de sentir falta deste elogio, deste miminho minúsculo que se pode fazer, falei com o André sobre sentir que ele não me presenteava com nenhum destes bombons para o ego.
A cara de indiferença do André é a mesma de quando o Porto ganha. Mas triste é eu pensar que sou um Sporting muito falhado e que em todas as minhas vitórias vejo derrotas.
É como se eu não visse o mundo, ou estivesse desfasada dele. Por um lado, oiço as pessoas a dizerem-me que é estúpido (quase pecado) eu sentir-me assim, dadas as minhas boas qualidades. Por outro lado, estou eu com uns enormes óculos fundo de garrafa a dizer: "Não estou a ver nada!"
Quando nos falta auto-estima, não são os outros que no-la dão. Mas podem alimentá-la, regá-la, cultivá-la em nós. É por essa razão que assim que vejo um aluno meu com um casaco giro ou um penteado novo, faço questão de lho dizer logo. No que a mim me diz respeito, só estou a ser sincera e esse gesto pode fazer a diferença no dia dele. Pode ser a luz na escuridão, pode ser motivo de um sorriso ou de um pensamento: "Eu sou mais do que suficiente!"
Decidi, por isso, numa das minhas muitas decisões que me têm assolado esta semana, a aumentar o meu clube de fãs, dado que ele tem vindo a sofrer baixas, e por essa razão vou trazer os meus cães para a casa nova.
...
Das minhas divagações todas, é esta a conclusão que chego?
É.
É que nem eu sei o que quer uma mulher, mas sei quer sempre coisas diferentes, em diferentes momentos, e depois já não sabe se as quer, ou se alguma vez as quis.
Por essa razão, é que precisamos do nosso clube de fãs: para nos centrarmos, para sabermos quem somos e o que real e efectivamente precisamos mais de ser. Para nos contentarmos connosco, porque isso já é um enorme privilégio.
Pena é que cada um de nós não tenha essa certeza e precise da certeza do outro, para reafirmar a sua.
Eu, infelizmente, ainda sou assim.
E ando a convencer-me de que isso, apesar de tudo, é suficiente.
Não qual a razão da existência humana, não qual o sentido da vida, mas o que quer uma mulher.
Não posso deixar de fazer referência ao facto de que entrei em 2011com funerais. Já lá vão três!
Um deles foi o de um aluno meu do ano passado. E como estas mortes antecipadas doem e desencadeiam em nós uma enorme incompreensão. Não podemos dizer: "Olha, já está no descanso, já não sofre mais, aquilo também não era viver."
Não nos podemos conformar em nenhum destes resguardos, que apenas querem mostrar como a morte deve normal e aceitável. Não é, nunca é. Tentamos de tudo, fingimos para nós e para os outros, mas é a memória que nos trai. Medo de esquecer, e lembrança de tudo o que aconteceu de bom.
Como se pode ver, tenho andado num enorme vórtice de pensamento sobre o sentido da Vida, no geral, e da minha vida, em particular. Que sentido tem tudo isto?
Que sentido tem perdermos o nosso companheiro de equipa? Que sentido tem perdermos aquele com que partilhámos uma vida? Que somos nós afinal, senão uma equipa com um jogador a menos, que invariavelmente põe as culpas no Árbitro desta partida a que chamamos Vida. As minhas palavras são melosas, mas o seu conteúdo não.
Doeu-me, mais do que constatar ausências, os desfasamentos que a morte cria na vida dos outros. As redefinições de identidade que isso pode causar. E logo eu, sempre atenta, sempre precavida, penso: como seria se fosse comigo? Se fosse eu a perder o meu marido? Se fosse eu a perder o meu filho?
Estou a atravessar uma das mais difíceis fases da minha vida, daquelas que envolvem escolhas, opções por um lado e recusas ao outro. Significa ganhar, perdendo, abdicando.
Talvez eu tenha deixado estas escolhas para demasiado tarde e, talvez por isso, tenha sujeitado o meu corpo, e a minha saúde, ao esgotamento e à depressão. A luta é comigo, contra mim. Eu versus eu. O André ajuda, mas não pode percorrer este caminho por mim. Tenho de ser eu a fazê-lo. E questiono como seria, se não eu o tivesse ao meu lado... Sinto-me ainda tão pequenina, tão cheia de coisas para aprender (que no fundo é ser vazia), tão impotente perante os desafios que se me colocam, mas acima de tudo, aqueles que coloco a mim própria.
Horas, que já devem somar dias inteiros de conversas, sobre mim, as minhas reacções, o que eu faço e não faço, mas que não controlo. E nada.
Nada.
Nem quero mais explorar como me sinto, ou quais são os meus sintomas. Eu estou é profundamente frustrada por nunca mais dar com o diagnóstico. E sem ele, não há cura.
Não sei a raiz do problema, não sei o que tenho de atacar. Os comprimidos são uma ajuda: é comprar tempo e alguma energia para atacar.
Sinto-me pequena, ínfima, perante aquilo que eu posso ser para mim própria: o meu maior e mais devastador inimigo, aquele que num golpe afiado e preciso, me deita por terra e me quebra as rótulas para não mais me levantar.
Posso pôr a culpa em alguma coisa? Claro que sim, em mim.
Fui eu que criei todo este teatro, toda esta fartura de angústias para eu me rebolar.
Que foi que eu fiz?
Tentei fazer como Ícaro. Quis tocar o sol, quis tudo da vida, não suportei abdicar de nada. Queria mais e mais e tudo bem e perfeito.
O Ícaro espetou-se no chão. E eu também.
Há um ponto em que pagamos pela nossa parvoíce na vida. É quando o nosso corpo dá sinal. O meu tem dado sinais, mas age sem eu lhe mandar e sem o intentar. Experimento esta sensação de descontrole de mim, a começar pelas minhas reacções físicas, há já alguns anos. Primeiro, com os sintomas da ansiedade, mais recentemente com os sintomas da depressão, e pergunto-me: o que estás tu à espera, Ana Sofia, para tomar nas mãos as rédeas da tua própria vida?
Anima-me a pergunta, derrota-me a resposta: não sei.
A esta angústia de ser uma menina irreverente que não cumpre regras, uma indisciplinada na minha sala de aula, uma desatenta às minhas próprias ordens, sem ter nunca a possibilidade de pôr esta fedelha na rua, tenho a somar a vergonha.
Claro, a vergonha.
Eu sou a personificação de tudo o que desprezo, e sou-o, contudo.
Faço tudo mal, ao contrário de tudo o que me rege, mas faço-o, contudo.
E o que me sobra ao fim do dia? Lidar com tudo isto e com a perspectiva que os outros têm de mim, e que reconheço que seria a minha, não fosse esta a minha condição.
Como sempre, aplicando as leis cristãs e das fábulas: tudo acontece, por uma razão.
E aquilo que se assume como uma condição muito pessoal, que envolve o domínio físico e psicológico da minha pessoa, rapidamente extravasa para se constituir como uma metáfora do meu domínio profissional.
Hoje vejo os meus alunos com outros olhos e lamento ter-lhes exigido o cumprimento de tarefas e prazos, sem considerar que eles os falhassem por outra razão que não fosse a preguiça.
Se um aluno está distraído, distante, calado e sem motivação, eu já não venho com aquela lenga-lenga do "isto no meu tempo não era assim, nós cumpríamos o que era pedido, esta geração vai por um caminho que não sei onde vai dar!"
Hoje sei que nem tudo o que fazemos depende de o querermos, ou não, fazer. Há coisas que não queremos fazer e fazemos, e outras que queremos fazer e não ficam feitas.
Olho para esses meus alunos, sem me preocupar em ser branda nem em desculpabilizá-los pela sua preguiça. Olho-os e vejo iguais, a mim. Pobres desgraçados encerrados num mundo que não controlam, como drogados. Remetidos a um vício do qual já não conseguem sair sozinhos.
Eu sei qual foi o meu vício: foi acumular coisas para fazer, que foi só tudo o que me apareceu pela frente.
Mas sei, que a juntar ao vício, e é por isso que, de resto, caímos nele, houve ali uma falta, uma ausência. A morte da minha auto-estima.
Eu tinha de ser mais, fazer mais, obter mais, porque eu, tal como era e sou, não era suficiente.
Eu não era suficiente... Que afirmação dolorosa, tanto mais quando a imagino proferida na boca de qualquer dos meus alunos.
"Tu não és suficiente? Isso é que era bom! Tu és um ser excepcional e único!"
Esta seria a minha abordagem que, embora sempre inflamada é sempre sentida. Para os outros.
Acho que todos são seres especiais e fabulosos, mas eu não. Eu podia ser sempre um bocadinho melhor.
Esta falha, no meu amor próprio, em muito tem a ver com o que eu descobri, esta semana, ser o nosso "clube de fãs".
O meu clube de fãs, durante a minha infância resumiu-se à minha família. E, porque eu sempre fui uma rapariguinha determinada, eles nunca pensaram ser necessário alimentar-me o ego. Nunca vi ninguém com pompons a saltar e a gritar o meu nome. Quase que era esperado que eu fosse assim. "Assim," não era ser o melhor possível, mas ser a melhor.
Quando disse ao meu pai que tinha tido um 20 a História de Arte na nota de final de ano, ele não me deu os parabéns. Na altura, encarei como se ainda me tivesse faltado qualquer coisa. Devo ter achado que tinha mesmo era de ter arrancado um 21 ao professor...
Hoje sei, com muito custo, porque não foi esta a minha leitura durante as últimas décadas, que ninguém comentou ou valorizou os meus sucessos, porque todo o meu clube de fãs, não esperava de mim outra coisa.
Quer dizer, quando o Sporting ganha, faz-se uma festa.
Quando o Porto perde é que a malta se chateia.
O meu pai redimiu-se na minha fita de fim de curso, com palavras que me fizeram chorar compulsivamente, e que traduzem a melhor manifestação que se pode ter de um fã . Ainda assim, nunca me as repetiu em voz, e nunca se falou sobre isso. Li-as em deferido e guardei-as no meu íntimo.
Relembro-me delas, sempre que não acredito no meu poder, e que é quase sempre. Aliás, o efeito que elas têm nem é nenhum. Acho sempre que a pessoa estava só a ser simpática, porque eu sou do mais cruel comigo própria e faço-me acreditar que eu tenho de arrancar 21's à vida, coisa que muito dificilmente vou conseguir.
A propósito de sentir falta deste elogio, deste miminho minúsculo que se pode fazer, falei com o André sobre sentir que ele não me presenteava com nenhum destes bombons para o ego.
A cara de indiferença do André é a mesma de quando o Porto ganha. Mas triste é eu pensar que sou um Sporting muito falhado e que em todas as minhas vitórias vejo derrotas.
É como se eu não visse o mundo, ou estivesse desfasada dele. Por um lado, oiço as pessoas a dizerem-me que é estúpido (quase pecado) eu sentir-me assim, dadas as minhas boas qualidades. Por outro lado, estou eu com uns enormes óculos fundo de garrafa a dizer: "Não estou a ver nada!"
Quando nos falta auto-estima, não são os outros que no-la dão. Mas podem alimentá-la, regá-la, cultivá-la em nós. É por essa razão que assim que vejo um aluno meu com um casaco giro ou um penteado novo, faço questão de lho dizer logo. No que a mim me diz respeito, só estou a ser sincera e esse gesto pode fazer a diferença no dia dele. Pode ser a luz na escuridão, pode ser motivo de um sorriso ou de um pensamento: "Eu sou mais do que suficiente!"
Decidi, por isso, numa das minhas muitas decisões que me têm assolado esta semana, a aumentar o meu clube de fãs, dado que ele tem vindo a sofrer baixas, e por essa razão vou trazer os meus cães para a casa nova.
...
Das minhas divagações todas, é esta a conclusão que chego?
É.
É que nem eu sei o que quer uma mulher, mas sei quer sempre coisas diferentes, em diferentes momentos, e depois já não sabe se as quer, ou se alguma vez as quis.
Por essa razão, é que precisamos do nosso clube de fãs: para nos centrarmos, para sabermos quem somos e o que real e efectivamente precisamos mais de ser. Para nos contentarmos connosco, porque isso já é um enorme privilégio.
Pena é que cada um de nós não tenha essa certeza e precise da certeza do outro, para reafirmar a sua.
Eu, infelizmente, ainda sou assim.
E ando a convencer-me de que isso, apesar de tudo, é suficiente.
09 fevereiro 2011
Mudáissti?
Mudei.
Estou a escrever na minha nova casa, na minha nova cozinha, onde o teclar dos meus dedos faz eco numa casa (ainda) vazia.
Ouvi ontem na rádio o que já sabia: manter diários faz bem à alma. Eu tenho-me borrifado para a alma, porque acho que é muito mais importante fazer trabalhos para o mestrado, para a escola, fazer mudanças e limpezas ad eternum.
Aqui no blog, tenho muitas ideias para arrumar e uma mente inteira para limpar - tal como cá em casa.
(...)
Passaram-se 12 dias e eu já não estou a teclar na cozinha. Longe vai o tempo em que eu arranjava tempo para escrever um post de rajada. Agora é encontrar uns bocadinhos para ir compondo a manta de retalhos do meu quotidiano.
Estava eu a dizer que mudei. As coisas têm acontecido a uma velocidade que é difícil acompanhar o ritmo...
A nova casa faz eco e é branca da cor da neve. Acho que é o mais importante a constatar. É sossegada, não oiço ninguém com tamancas por cima de mim até à uma e meia da manhã e, sobretudo, não gasto neurónios, nem dentrites nem sinapses, com o registo inconsciente e involuntário de tudo o que se passa no prédio: o vizinho que vai sair e fecha a porta, a vizinha que vai para o trabalho e desce as escadas de rompante com os seus sapatos de marca "Picareta de Pedra"; o estupor do cão do vizinho de cima que deve ter a mesma inteligência que o dono e incomoda toda a gente com as suas manias (a do cão é ladrar por tudo e por nada, a do dono é encher as escadas com vasos).
Raistaparta a vida dos prédios! Não todos, mas os mal projectados, como o meu!
Enfim.
Agora, cá em casa, dorme-se. E só se acorda quando o corpo quer, não quando a máquina da vizinha está a fazer a centrifugação!
As vantagens de uma casa, que não é um apartamento em comunidade com outros, são, como podem ver, imensas. No entanto, a casinha que eu arranjei tem muito para chatear. A começar porque é maior que o meu T2. Viver num T2 é como viver numa caravana sem rodas. As coisas arrumam-se depressa, limpam-se depressa e já está. Na nova casa eu já ando desde o dia 15 de Janeiro, dia da mudança, para conseguir limpar isto tudo, tentando, o melhor possível, manter limpos os sítios por onde já passei. É um inferno, digo-vos!
No entanto, agora já posso comprar mais tachos e maquinetas para a cozinha, sem me preocupar onde vou arranjar espaço para os arrumar.
O dia da mudança foi uma alegria, e uma tristeza, pelo menos para mim.
Eu havia fotografado a casa antes de a desmanchar e, sabe Deus, o que me custou vê-la assim despida, sabendo que, apesar de tudo, tinha ali passado bons momentos. As almoçaradas apertadas, as matinés de inverno com a janela aberta para aliviar o calor (a casinha era um forno!), o fim-de-ano de 2006 que foi o primeiro fim de ano que lá passei... Eu sou saudosista e não consegui impedir-me de me sentir por aquela casa que foi minha e me estimou durante três anos. A casa que eu projectei em interiores, que executei as pinturas de paredes e tectos, que adornei, que compus... Estava ali uma parte de mim, e estava a ser levada aos pedaços pelos meus amigos, num atrelado improvisado para fazer o longo e interminável trajecto de atravessar a rua.
Pois é: mudei-me para o lado de lá! A casa que eu procurei durante tanto tempo, muitas vezes em desespero, estava mesmo à minha frente, do outro lado da rua. Os dias que amargurei a olhar pela janela, à espera de estar pronta ou do dia da escritura, foram recompensados com o brinde que se fez na cozinha, numas flutes compradas há anos, à espera de serem estreadas.
Tudo correu, toda a gente ajudou. A minha sogra lavou-me os armários todos da cozinha, a minha mãe lavou-me os quartos e trouxe-nos um bolo de chocolate caseiro para retemperar forças. Houve quem não pudesse vir, mas eu sei que estavam cá à mesma a dar força, e como ela foi precisa para levar até ao 1º andar um camiseiro cheio de roupa!
Já se vê que eu sou muito prática. As mudanças comigo são com roupa dentro do armários e tudo! LOL!
Mas a malta é amiga e poupou-me à desfeita de derreter dinheiro numa transportadora que me ia quinar as arestas vivas da minha mobília de cerejeira. Tudo ficou impecável e as únicas quinadas foram dadas por mim, já cá a morar, quando tentava montar uma cómoda do IKEA e bati sem querer com uma prateleira nos pés da cama. Oh meu Deus! Que ironia do destino!
Tive de me habituar a chamar pelo André, quando antigamente dava três passos e conseguia logo detectá-lo numa das divisões da casa.
Tive de me habituar ao eco, mas já tentei fazer o mais que pude para minimizá-lo.
Tive que me habituar ao branco... mentira. Ainda não me habituei.
Como é possível que as pessoas digam que um quarto violeta ia cansá-las?? Eu vivo há menos de um mês numa casa totalmente branca e ando a entrar em paranóia com o tédio!!!
Obviamente que a falta de iniciativa para uma pintura exuberante da minha casa, deve-se ao facto de estarmos no Inverno, em aulas da escola e do mestrado e em trabalhos da escola e do mestrado.
Tive de adiar, muito contra a minha vontade.
Antigamente, quando acordava, especava para o tecto branco e o meu olhar logo pairava pelas paredes violetas, de um violeta que acolhe, que nos diz logo pela manhã que somos fabulosas e merecemos todas aquelas vibrações cromáticas. Ao sair de casa, dava uma olhadela no espelho da entrada, sorria (como é hábito de qualquer maluco) para testar o grau de eficácia e era apoderada pelo meu framboesa da parede da entrada - a cor mais cromaticamente orgásmica com que já pintei paredes. Lembro-me de ter passado o rolo de pintura duas ou três vezes e fiquei de boca aberta com o impacto da cor. Só me saíam uns sons agudos de espanto e entusiasmo, e durante uns bons cinco minutos estes sintomas continuaram, enquanto eu ia preenchendo a parede com cor.
Tal como quando saí da faculdade (na licenciatura) e dava comigo a passar a mão pelas paredes, como quem vai matando saudades antes de as ter, também eu agora passo os dedos pelas cores gulosas com que pintei a minha casa e encosto as têmporas às paredes como se elas fossem (ainda) a fonte da minha energia.
A casa aqui é só branca. Como se diria na peça Arte de Yasmina Reza, "branca, com riscas brancas... na diagonal"!
Hoje quando acordo, olho para o tecto branco, e quando o olhar desce para a parede da cabeceira da cama, em vez do branco, sem graça, límpido e asséptico, eu vejo o azul petróleo, rico, fresco e quente, vaidoso, luxuoso, retemperador, calmo sem ser apático, que tenho previsto para aquela parede.
Desço e venho à cozinha para tomar o pequeno almoço. Ali tudo é branco, com excepção dos móveis que são brancos acinzentados e do chão e do granito que são negros. Credo!!!!
Parece que estou num hospital! Sento-me à mesa, com o tampo de vidro... vá lá, vocês sabem... branco, e imagino que estou rodeada de cor. À minha direita, enquanto os meus olhos apontam para uma parede branca, eu vejo-a púrpura, numa tonalidade de roxo que puxa muito ao rosa e que, ainda assim, se mantém indecisa. Nem é carne, nem é peixe, para fazer jus ao contexto.
Dilemas do quotidiano? São estes. Mais a experiência psicológica que é estar desde 15 de Janeiro sem TV por cabo. Atravessei a rua, mas é como se tivesse ido morar para os confins do Alentejo (tipo Amareleja, que é o único destino que me ocorre para uma pessoa cromática como eu).
Eu e o André decidimos vir para a casa nova sem mais demoras e pensámos que se é pá loucura, é pá loucura! Trouxemos a TV da cozinha que tem antena e lá vamos sabendo tudo o que se passa no mundo e na cabeça de gente parva, como a Maya. Sabiam que ela pôs uns implantes?? Isto são os benefícios de não ter TV por cabo. (!)
Como tenho saudades de me entreter a ver um programa educativo, daqueles que nos ensinam como se fazem rodas de carroças ou pratos de uma bateria.... Saber a verdadeira personalidade da Cleópatra e como ela era uma maluca a dar a volta aos imperadores romanos...Nada.
A coisa mais parecida com uma televisão e que me faz perder eras esquecidas a olhar para ela é a lareira: também é rectangular e também tem imagens em movimento! Pode não ser tão educativa como o Discovery, o Odisseia ou o History Channel, mas lá que me consegue hipnotizar, disso não há dúvidas.
Não nego, que apesar das ânsias em saber cusquices das celebridades no E Enterntainment, eu tenho vivido bastante bem sem televisão: os quatro canais portugueses na cozinha não contam. Por amor de Deus, aquilo é mais rádio com imagens desfocadas que outra coisa!
Dezasseis dias volvidos o balanço é este:
Estou feliz!
Feliz por começar de novo, do zero, com esta enorme tela em branco prontinha para eu pintar.
Feliz.
Mesmo sabendo que tenho uma casa de banho fechada à chave, para fingir que não existe e eu não ter de me preocupar em limpá-la, mesmo correndo o risco de, quando abrir a porta, me sair dali o fantasma das donas de casa briosas!!
Valha-me Deus... ao ponto que eu cheguei...
Estou a escrever na minha nova casa, na minha nova cozinha, onde o teclar dos meus dedos faz eco numa casa (ainda) vazia.
Ouvi ontem na rádio o que já sabia: manter diários faz bem à alma. Eu tenho-me borrifado para a alma, porque acho que é muito mais importante fazer trabalhos para o mestrado, para a escola, fazer mudanças e limpezas ad eternum.
Aqui no blog, tenho muitas ideias para arrumar e uma mente inteira para limpar - tal como cá em casa.
(...)
Passaram-se 12 dias e eu já não estou a teclar na cozinha. Longe vai o tempo em que eu arranjava tempo para escrever um post de rajada. Agora é encontrar uns bocadinhos para ir compondo a manta de retalhos do meu quotidiano.
Estava eu a dizer que mudei. As coisas têm acontecido a uma velocidade que é difícil acompanhar o ritmo...
A nova casa faz eco e é branca da cor da neve. Acho que é o mais importante a constatar. É sossegada, não oiço ninguém com tamancas por cima de mim até à uma e meia da manhã e, sobretudo, não gasto neurónios, nem dentrites nem sinapses, com o registo inconsciente e involuntário de tudo o que se passa no prédio: o vizinho que vai sair e fecha a porta, a vizinha que vai para o trabalho e desce as escadas de rompante com os seus sapatos de marca "Picareta de Pedra"; o estupor do cão do vizinho de cima que deve ter a mesma inteligência que o dono e incomoda toda a gente com as suas manias (a do cão é ladrar por tudo e por nada, a do dono é encher as escadas com vasos).
Raistaparta a vida dos prédios! Não todos, mas os mal projectados, como o meu!
Enfim.
Agora, cá em casa, dorme-se. E só se acorda quando o corpo quer, não quando a máquina da vizinha está a fazer a centrifugação!
As vantagens de uma casa, que não é um apartamento em comunidade com outros, são, como podem ver, imensas. No entanto, a casinha que eu arranjei tem muito para chatear. A começar porque é maior que o meu T2. Viver num T2 é como viver numa caravana sem rodas. As coisas arrumam-se depressa, limpam-se depressa e já está. Na nova casa eu já ando desde o dia 15 de Janeiro, dia da mudança, para conseguir limpar isto tudo, tentando, o melhor possível, manter limpos os sítios por onde já passei. É um inferno, digo-vos!
No entanto, agora já posso comprar mais tachos e maquinetas para a cozinha, sem me preocupar onde vou arranjar espaço para os arrumar.
O dia da mudança foi uma alegria, e uma tristeza, pelo menos para mim.
Eu havia fotografado a casa antes de a desmanchar e, sabe Deus, o que me custou vê-la assim despida, sabendo que, apesar de tudo, tinha ali passado bons momentos. As almoçaradas apertadas, as matinés de inverno com a janela aberta para aliviar o calor (a casinha era um forno!), o fim-de-ano de 2006 que foi o primeiro fim de ano que lá passei... Eu sou saudosista e não consegui impedir-me de me sentir por aquela casa que foi minha e me estimou durante três anos. A casa que eu projectei em interiores, que executei as pinturas de paredes e tectos, que adornei, que compus... Estava ali uma parte de mim, e estava a ser levada aos pedaços pelos meus amigos, num atrelado improvisado para fazer o longo e interminável trajecto de atravessar a rua.
Pois é: mudei-me para o lado de lá! A casa que eu procurei durante tanto tempo, muitas vezes em desespero, estava mesmo à minha frente, do outro lado da rua. Os dias que amargurei a olhar pela janela, à espera de estar pronta ou do dia da escritura, foram recompensados com o brinde que se fez na cozinha, numas flutes compradas há anos, à espera de serem estreadas.
Tudo correu, toda a gente ajudou. A minha sogra lavou-me os armários todos da cozinha, a minha mãe lavou-me os quartos e trouxe-nos um bolo de chocolate caseiro para retemperar forças. Houve quem não pudesse vir, mas eu sei que estavam cá à mesma a dar força, e como ela foi precisa para levar até ao 1º andar um camiseiro cheio de roupa!
Já se vê que eu sou muito prática. As mudanças comigo são com roupa dentro do armários e tudo! LOL!
Mas a malta é amiga e poupou-me à desfeita de derreter dinheiro numa transportadora que me ia quinar as arestas vivas da minha mobília de cerejeira. Tudo ficou impecável e as únicas quinadas foram dadas por mim, já cá a morar, quando tentava montar uma cómoda do IKEA e bati sem querer com uma prateleira nos pés da cama. Oh meu Deus! Que ironia do destino!
Tive de me habituar a chamar pelo André, quando antigamente dava três passos e conseguia logo detectá-lo numa das divisões da casa.
Tive de me habituar ao eco, mas já tentei fazer o mais que pude para minimizá-lo.
Tive que me habituar ao branco... mentira. Ainda não me habituei.
Como é possível que as pessoas digam que um quarto violeta ia cansá-las?? Eu vivo há menos de um mês numa casa totalmente branca e ando a entrar em paranóia com o tédio!!!
Obviamente que a falta de iniciativa para uma pintura exuberante da minha casa, deve-se ao facto de estarmos no Inverno, em aulas da escola e do mestrado e em trabalhos da escola e do mestrado.
Tive de adiar, muito contra a minha vontade.
Antigamente, quando acordava, especava para o tecto branco e o meu olhar logo pairava pelas paredes violetas, de um violeta que acolhe, que nos diz logo pela manhã que somos fabulosas e merecemos todas aquelas vibrações cromáticas. Ao sair de casa, dava uma olhadela no espelho da entrada, sorria (como é hábito de qualquer maluco) para testar o grau de eficácia e era apoderada pelo meu framboesa da parede da entrada - a cor mais cromaticamente orgásmica com que já pintei paredes. Lembro-me de ter passado o rolo de pintura duas ou três vezes e fiquei de boca aberta com o impacto da cor. Só me saíam uns sons agudos de espanto e entusiasmo, e durante uns bons cinco minutos estes sintomas continuaram, enquanto eu ia preenchendo a parede com cor.
Tal como quando saí da faculdade (na licenciatura) e dava comigo a passar a mão pelas paredes, como quem vai matando saudades antes de as ter, também eu agora passo os dedos pelas cores gulosas com que pintei a minha casa e encosto as têmporas às paredes como se elas fossem (ainda) a fonte da minha energia.
A casa aqui é só branca. Como se diria na peça Arte de Yasmina Reza, "branca, com riscas brancas... na diagonal"!
Hoje quando acordo, olho para o tecto branco, e quando o olhar desce para a parede da cabeceira da cama, em vez do branco, sem graça, límpido e asséptico, eu vejo o azul petróleo, rico, fresco e quente, vaidoso, luxuoso, retemperador, calmo sem ser apático, que tenho previsto para aquela parede.
Desço e venho à cozinha para tomar o pequeno almoço. Ali tudo é branco, com excepção dos móveis que são brancos acinzentados e do chão e do granito que são negros. Credo!!!!
Parece que estou num hospital! Sento-me à mesa, com o tampo de vidro... vá lá, vocês sabem... branco, e imagino que estou rodeada de cor. À minha direita, enquanto os meus olhos apontam para uma parede branca, eu vejo-a púrpura, numa tonalidade de roxo que puxa muito ao rosa e que, ainda assim, se mantém indecisa. Nem é carne, nem é peixe, para fazer jus ao contexto.
Dilemas do quotidiano? São estes. Mais a experiência psicológica que é estar desde 15 de Janeiro sem TV por cabo. Atravessei a rua, mas é como se tivesse ido morar para os confins do Alentejo (tipo Amareleja, que é o único destino que me ocorre para uma pessoa cromática como eu).
Eu e o André decidimos vir para a casa nova sem mais demoras e pensámos que se é pá loucura, é pá loucura! Trouxemos a TV da cozinha que tem antena e lá vamos sabendo tudo o que se passa no mundo e na cabeça de gente parva, como a Maya. Sabiam que ela pôs uns implantes?? Isto são os benefícios de não ter TV por cabo. (!)
Como tenho saudades de me entreter a ver um programa educativo, daqueles que nos ensinam como se fazem rodas de carroças ou pratos de uma bateria.... Saber a verdadeira personalidade da Cleópatra e como ela era uma maluca a dar a volta aos imperadores romanos...Nada.
A coisa mais parecida com uma televisão e que me faz perder eras esquecidas a olhar para ela é a lareira: também é rectangular e também tem imagens em movimento! Pode não ser tão educativa como o Discovery, o Odisseia ou o History Channel, mas lá que me consegue hipnotizar, disso não há dúvidas.
Não nego, que apesar das ânsias em saber cusquices das celebridades no E Enterntainment, eu tenho vivido bastante bem sem televisão: os quatro canais portugueses na cozinha não contam. Por amor de Deus, aquilo é mais rádio com imagens desfocadas que outra coisa!
Dezasseis dias volvidos o balanço é este:
Estou feliz!
Feliz por começar de novo, do zero, com esta enorme tela em branco prontinha para eu pintar.
Feliz.
Mesmo sabendo que tenho uma casa de banho fechada à chave, para fingir que não existe e eu não ter de me preocupar em limpá-la, mesmo correndo o risco de, quando abrir a porta, me sair dali o fantasma das donas de casa briosas!!
Valha-me Deus... ao ponto que eu cheguei...