A máquina fotográfica continua a arranjar, mas este fim de semana ela perdeu uma das melhores imagens que se podem captar:
Cem mil pessoas, unidas por um descontentamento e insatisfação generalizados.Genuínos.
A emoção era grande e eu já estava a ficar enervada. Passei a manhã e atestar de combustível a minha revolta e à hora do almoço já estava incendiada que chegasse. Toma-se um comprimidinho para acalmar a ansiedade, que já me fazia suar em bica, e ala connosco para a Manif.
Ao passar a ponte já se via um helicóptero a sobrevoar a Baixa. Quê? Já??
Passamos pelo túnel do Marquês e a saída já estava encerrada (como seria de esperar), mas quando viemos ao de cima... Caramba! Um comboio de autocarros a perder de vista e muita gente vestida de preto. Com bandeiras, cartazes, apitos ou autocolantes, todos tinham trazido a sua indignação consigo.
São 14 horas e tenho o Parque Eduardo VII a meus pés, com o Marquês de Pombal em pano de fundo. A agitação ao longe é visível. O meu coraçãozinho bate mais depressa, como acontece nas crianças antes do carrocel começar a andar.
"Somos muitos, pá, somos muito mais do que eu estava à espera!"
Tinha ouvido na rádio que se esperavam 70 mil, mas para aquilo ter alguma credibilidade tinha de superar esse número, para que não se fizessem as estatísticas divergentes do costume entre Ministério e Sindicatos.
Os de Lisboa iam na frente. Onde está o SPGL? Já está na boca da Avenida. Bora lá!
Espera-se uma eternidade em pé, em formação densa. Valem-nos como distracção os helicópteros que rodopiavam no ar a filmar a malta cá em baixo.
Eu não tinha bandeira, não tinha crachá, não tinha identificação partidária ou sindicalista, nem estava ligada a nenhum movimento de professores. Fiz questão de não gritar uma única palavra de ordem, de não me conotar com aqueles que a Ministra diz à boca cheia que nos estão a instrumentalizar.
Apenas marchei.
Do Marquês de Pombal ao Terreiro do Paço.
Empunhando a minha indignação na expressão de enterro estampada na cara, confirmando na roupa o luto que ando viver pela Educação.
Somos muitos, mas não sei quantos. As redes de telemóvel estavam saturadas, mas lá consigo enviar umas mensagens e obter respostas:já somos 75 mil. Ena pá!
Estávamos nós nos Restauradores e alguém anuncia: "Ainda há malta de Lisboa no início da Avenida!"
A minha boca abre-se de pasmo. Ainda falta a malta toda que veio de fora e nós, só daqui da metrópole, já enchemos a artéria mais emblemática da capital. Era difícil de perceber como isto havia acontecido, mas dada a quantidade de gente que me cercava não era difícil de acreditar.
Poucas foram as pessoas que nos viam passar, mas no Rossio encontrei um senhor de cabelos brancos, que numa folha A4 havia escrito a seguinte mensagem:
"Tenho dois netos a estudar
Confio nos professores
Não confio na democracia deste governo.
Confio na democracia da escola."
No meio de uma manifestação daquele calibre, ler aquele "confio nos professores" foi um bálsamo que fez os meus olhos encherem-se de água.
E naquele momento todas as barbaridades proferidas pela Ministra, e outros que tais, pareceram demasiado insignificantes.
A Rua do Ouro, com os prédios ao alto com a gente, fazia ecoar e amplificar os protestos, como se os professores estivessem mais zangados do que quando haviam começado a marchar.
Chega-se ao Terreiro do Paço e arruma-se um lugarzinho para sentar no chão e fazer a circulação recuperar de uma marcha lenta pouco saudável para as veias. Ouvem-se uns discursos inflamados proferidos pelos auto-proclamados porta-vozes dos professores.
E, de repente, a locutora de continuidade apela por um minuto de silêncio a um Terreiro do Paço já bem recheado (saliento que ainda só tinham chegado os de Lisboa).
"Um minuto de silêncio? A fulana é maluca? Somos mais que as mães e a malta não tem parado de gritar!"
Nem sequer pensei ser possível.
O motivo era nobre: um minuto de silêncio pelos colegas gravemente doentes a quem as Juntas Médicas mandaram trabalhar, atestando que reuniam as condições necessárias.
O Terreiro do Paço calou-se e o silêncio gritou a plenos pulmões. Os meus olhos encheram-se de lágrimas outra vez.
A convicção, como a solidariedade, e outros valores aparentemente já esquecidos pela nossa sociedade, tocam-me. Fazem-me acreditar nesse animal desgovernado dos tempos modernos, a quem dão o nome de ser humano.
Encontraram-se amigos, colegas de escolas antigas, professores que já foram nossos. E houve sempre espaço para um sorriso sentido, e uma felicidade genuína por encontrar outro companheiro do nosso percurso. Porque a felicidade é possível, mesmo quando nos sentimos enxovalhados e mal tratados.
E esta foi a grande lição daqueles professores, naquela tarde fria de Março.
É irrelevante que esta marcha seja considerada como irrelevante.
Aconteceu.
100 mil deles!
Como costuma dizer a minha mãe:
"Toma lá que é democrático!"
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